23 jul 2025 Fonte: Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Financiamento para o Desenvolvimento, União Europeia, Agenda 2030, Migrações e Refugiados, Direitos Humanos, Cooperação para o Desenvolvimento, Coerência das políticas, Cidadania e Participação, Alterações climáticas e ambiente, Ajuda Pública ao Desenvolvimento, Ajuda Humanitária e de Emergência, Advocacia Social e Política
O Quadro Financeiro Plurianual (QFP) é o orçamento de longo prazo da União Europeia, que define os limites de despesa e as prioridades políticas da UE num período de sete anos. O próximo QFP, que abrangerá o período de 2028 a 2034, conta já com a proposta legislativa da Comissão Europeia, estando no período de negociação interinstitucional entre a Comissão, o Conselho e o Parlamento Europeu. Esta negociação é crucial para definir o rumo político e financeiro da União, incluindo o montante e a ambição dos instrumentos externos, como o Global Europe. A sociedade civil europeia, através de plataformas como a CONCORD, está já mobilizada para garantir que o novo QFP reflita os compromissos da UE com a solidariedade global, os direitos humanos e a cooperação para o desenvolvimento. A adoção final do novo QFP deverá ocorrer até ao final de 2027, permitindo a sua entrada em vigor a 1 de janeiro de 2028.
O próximo QFP será determinante para definir o papel da UE no contexto internacional e o alcance das suas ambições em matéria de desenvolvimento sustentável. Num contexto global marcado por desigualdades crescentes, conflitos persistentes, crises humanitárias e alterações climáticas, a forma como a Europa estrutura o seu orçamento de ação externa terá implicações concretas sobre milhões de vidas. É neste quadro que se coloca a urgência de reforçar e proteger a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) como instrumento central da cooperação europeia.
Apesar do compromisso de dedicar 0,7% do Rendimento Nacional Bruto (RNB) à APD, os Estados-Membros continuam longe dessa meta. Em vez disso, temos assistido a cortes e à instrumentalização da ajuda para fins que não respeitam os critérios do Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) da OCDE. Face a estes cortes, a UE tem a oportunidade de se posicionar como grande ator de desenvolvimento a nível mundial. Para isso, é fundamental que coloque os valores da justiça social no centro da sua atuação.
O investimento no desenvolvimento humano deve ocupar um lugar central nas prioridades externas da UE. A educação, a saúde, a nutrição, a proteção social e o reforço de sistemas públicos acessíveis e de qualidade não são apenas bens em si mesmos – são também a base de sociedades mais justas e resilientes, e um contributo direto para a estabilidade global. Apesar de 45,3% da ajuda europeia atual estar orientada para estas áreas, a proposta é clara: este valor deve subir para, pelo menos, 50% no próximo ciclo financeiro.
É igualmente crucial garantir que os recursos cheguem a quem mais precisa. A proporção de ajuda europeia dirigida a Estados frágeis e em conflito caiu de 32% para menos de 14% entre 2019 e 2023. A ajuda aos Países Menos Desenvolvidos seguiu uma trajetória semelhante, reduzindo-se para cerca de 10%. Reverter esta tendência é não só uma questão de justiça como de eficácia: é nestes contextos que os desafios são maiores e o impacto da ajuda pode ser mais transformador. A UE deve comprometer-se a canalizar 50% da sua APD para Estados frágeis e a cumprir a meta de 0,2% do RNB para os países menos desenvolvidos.
O novo QFP é também uma oportunidade para reforçar compromissos temáticos, como a igualdade de género, a luta contra as desigualdades e a ação climática. As metas devem ser revistas: 85% da ajuda com objetivos significativos de redução de desigualdades, 20% da ajuda orientada para a igualdade de género como objetivo principal, pelo menos 5% dedicados ao financiamento de organizações de mulheres, e 35% do orçamento externo destinado à ação climática, com especial atenção à adaptação, perdas e danos, e soluções baseadas na proteção da natureza. A biodiversidade, frequentemente esquecida, deve receber pelo menos 15% do financiamento externo, em linha com os compromissos do Quadro Global para a Biodiversidade.
Além disso, a sociedade civil - especialmente as organizações locais - deve ser reconhecida como parceira essencial na conceção, implementação e avaliação da política de cooperação da UE. Para tal, é necessário garantir que, no mínimo, 15% do orçamento para a ação externa seja executado diretamente por estas organizações, através de modalidades de financiamento mais acessíveis, descentralizadas, transparentes e adaptadas à sua realidade. Só assim poderão desempenhar plenamente o seu papel como promotoras de mudança, vigilância democrática e coesão social.
É também imperativo pôr fim à utilização da APD como instrumento de controlo migratório. A ajuda ao desenvolvimento deve responder a necessidades reais, e não ser condicionada por interesses de curto prazo relacionados com políticas de retorno ou controlo de fronteiras. O próximo QFP deve manter o limite máximo de 10% para ações relacionadas com migração e assegurar que estas se orientam por princípios de direitos humanos, proteção e desenvolvimento sustentável, e não por lógicas securitárias.
Finalmente, é essencial que o próximo QFP seja orientado por uma lógica de coerência das políticas. A ação externa da UE não pode ser contraditada por outras áreas, como o comércio, o investimento ou o clima. As políticas europeias devem ser avaliadas pelo seu impacto nos países parceiros e orientadas pelo princípio da justiça global. A coerência deve deixar de ser um princípio abstrato para se tornar num critério operativo, transversal a todas as decisões orçamentais e políticas.
A recente proposta da Comissão Europeia de alocar 200 mil milhões de euros ao orçamento de ação externa da UE representa um aumento significativo e uma visão ambiciosa para o papel da Europa no mundo, especialmente num contexto de crescente instabilidade global. Este investimento é essencial para apoiar parceiros globais, enfrentar crises emergentes, combater a pobreza, e promover a segurança e prosperidade globais.
No entanto, a proposta inclui uma reestruturação que funde vários instrumentos de cooperação num único, o programa Global Europe. Esta arquitetura traz limitações significativas: uma concentração excessiva de instrumentos, a fusão de linhas orçamentais com mandatos distintos e a opacidade crescente na afetação de fundos dificultam uma ação externa eficaz, coerente e transparente. A manutenção de instrumentos separados - para a ajuda humanitária, o desenvolvimento, a política de vizinhança e a pré-adesão - é crucial para preservar a clareza de objetivos e garantir que os princípios da ajuda não são diluídos.
O próximo Quadro Financeiro Plurianual representa uma encruzilhada decisiva para a Cooperação Europeia: é fundamental que a UE aproveite esta oportunidade para reforçar a eficácia, a transparência e a justiça da sua ação externa, garantindo que os recursos são mobilizados de forma coerente, orientada por princípios internacionais e verdadeiramente centrada nas necessidades dos que vivem em contextos mais vulneráveis. Só assim poderá a União cumprir o seu papel enquanto ator global comprometido com a redução das desigualdades, a promoção dos direitos humanos e a construção de um futuro sustentável para todos.