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16 jul 2020 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Advocacia Social e Política, Sociedade Civil

Este artigo foi originalmente publicado na Edição Especial da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2020 "A Pandemia de Covi-19 e os Desafios do Desenvolvimento". Leia ou faça download da edição completa aqui.

 

Autora: Lysa John, Secretária Geral da Civicus

Vítimas da Covid-19 estão a morrer em corredores de hospital e nas ruas de Guaiaquil, no Equador. Populações famintas fazem filas com quilómetros por um cabaz alimentar básico em Tsuane, na África do Sul. Por todo o mundo, milhões de pessoas são atiradas para o desemprego. Desde a II Guerra Mundial que o mundo não vivia uma calamidade que perturbasse, de forma tão rápida e estrutural, todos os aspetos da vida como a da Covid-19. E nunca antes a sociedade civil teve tão pouco tempo de preparação para uma catástrofe desta magnitude.

Desde a II Guerra Mundial que o mundo não vivia uma calamidade que perturbasse, de forma tão rápida e estrutural, todos os aspetos da vida como a da Covid-19

Os governos têm atuado com diferentes graus de urgência e eficácia, mas a maioria tem aprovado leis que restringem a liberdade de movimento e aplicado quarentenas de modo a “achatar a curva”. Os estados tiveram de obedecer ao seu dever fundamental de proteção da vida das pessoas através de quarentenas, mas deverão conciliá-lo com redes de segurança económica e social adequadas ao auxílio dos/as que mais são afetados/as pelas medidas de confinamento – algo que muitos estados não conseguiram cumprir.

regimes um pouco por todo o mundo usaram as medidas relacionadas com a Covid-19 como instrumentos para transpor a linha entre a proteção dos/as seus/as cidadãos/ãs e a limitação da liberdade de expressão e violação dos direitos humanos

Poucos/as contestam a necessidade de distanciamento social e supressão de viagens. Estas restrições, porém, devem ser legais e não-discriminatórias, e necessárias à proteção da saúde pública. Contudo, regimes um pouco por todo o mundo usaram as medidas relacionadas com a Covid-19 como instrumentos para transpor a linha entre a proteção dos/as seus/as cidadãos/ãs e a limitação da liberdade de expressão e violação dos direitos humanos  por motivos políticos e autocráticos. Mais do que nunca, cabe à sociedade civil garantir o equilíbrio de poderes, denunciar injustiças e prestar apoio a quem está em situação de exclusão. 

Desafios e restrições ao espaço cívico


A dimensão e urgência da catástrofe da Covid-19 fizeram com que organizações não-governamentais, de ação humanitária e ativistas estejam a enfrentar dificuldades para responder a um aumento sem precedentes das necessidades.

A censura inicial imposta pela China contribuiu para que que o vírus se espalhasse. Utilizadores/as das redes sociais, bloggers, ativistas e jornalistas foram silenciados/as, detidos/as, intimidados/as e até agredidos/as por terem divulgado informação acerca do vírus ou criticado as autoridades de países como o Vietname, o Irão, o Níger, o Quénia, a Venezuela e a República Democrática do Congo. No Paquistão, existem relatos de a polícia ter detido profissionais de saúde que protestavam por falta de equipamento de proteção individual, enquanto que, nas Filipinas, África do Sul, e noutros países, as forças de segurança foram acusadas de usar força excessiva e humilharem cidadãos/ãs que desobedecem à quarentena.

Ações deste tipo dificultaram o trabalho de combate à pandemia, e tornaram ainda mais difícil para as pessoas protegerem-se a si próprias e às suas famílias, permitindo simultaneamente que a desinformação se alastre.

As quarentenas nacionais tiveram igualmente consequências imprevistas e potencialmente fatais. A ONU Mulheres alertou para o aumento da violência doméstica uma vez que as suas vítimas estão trancadas com os companheiros abusivos – conduzindo a uma “epidemia escondida”. Seis meses de confinamento podem resultar em 31 milhões de casos adicionais de violência de género, segundo uma análise do Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP), em colaboração com a Avenir Health, a Universidade Johns Hopkins e a Universidade Victoria na Austrália.

No passado mês de abril, mais de 600 organizações apelaram aos/às líderes mundiais para que não usassem a pandemia como pretexto para restringir o espaço cívico.

A sociedade civil na linha da frente

Como está a sociedade civil a reagir a este momento extraordinário da história?

As organizações locais estão a distribuir alimentos e a prestar auxílio às pessoas que não têm condições para trabalhar nem acesso a rendimento durante o confinamento. Há iniciativas de angariação de fundos para ajuda de emergência, medicamentos e equipamento de proteção individual para profissionais de saúde. Há relatos de que, na Índia, em 13 dos seus estados, as ONG têm tido um desempenho superior ao dos governos locais na prestação de ajuda humanitária a trabalhadores migrantes retidos e aos/às pobres.

Além dos esforços humanitários, os grupos de defesa dos direitos humanos estão a responsabilizar as autoridades pelas suas atuações.  No Zimbabué, o grupo de advocacy “Advogados pelos Direitos Humanos” conseguiu aprovar uma petição urgente para pôr fim aos abusos cometidos pelas forças de segurança do país.

Além dos esforços humanitários, os grupos de defesa dos direitos humanos estão a responsabilizar as autoridades pelas suas atuações

As atividades organizadas pela sociedade civil têm sido apoiadas por ações cívicas informais. No Brasil, muitos cidadãos/ãs têm manifestado a sua revolta contra a gestão da pandemia levada a cabo pelo presidente Jair Bolsonaro batendo em panelas e frigideiras nas suas varandas.

O vírus pode atingir qualquer pessoa, mas as suas consequências chamam a atenção para desigualdades que já existiam. Na extremamente desenvolvida Singapura, os/as trabalhadores/as migrantes alojados/as em dormitórios sobrelotados têm sido os/as mais afetados/as pela pandemia, perfazendo, até 1 de maio, cerca de 85% dos 16000 casos de Covid-19 desta cidade-estado. Os grupos cívicos foram determinantes para dar a conhecer esta situação calamitosa. 

O G-20 e o Fundo Monetário Internacional prometeram a suspensão do pagamento das dívidas externas dos países mais pobres, possibilitando aos estados o redireccionamento de recursos para os cuidados de saúde e ajuda às populações mais pobres. Mas estas são apenas medidas temporárias. Reconhecendo que a crise representa uma oportunidade para as instituições financeiras negociarem reformas permanentes nas suas abordagens à dívida externa, as organizações da sociedade civil têm procurado garantir que este objetivo continue a ser central na resposta internacional a esta crise.

Apesar do distanciamento social, a pandemia aproximou as pessoas. Em meados de abril, cidadãos/ãs e artistas espalhados/as pelo mundo demonstraram o poder das ações sociais quando o concerto virtual One World: Together at Home angariou quase 128 milhões de dólares para apoiar os/as profissionais de saúde que estão na linha da frente no combate à Covid-19.

Juntos somos mais fortes


O setor do desenvolvimento não estava preparado para uma calamidade desta magnitude. Obrigou-nos a refletir acerca da fragilidade dos nossos sistemas de apoio, a enfrentar esse problema e a criar uma oportunidade para uma mudança permanente no nosso trabalho com vista a um futuro mais resiliente.

As mulheres representam quase 70% da mão-de-obra do nosso setor, mas estão fortemente sub-representadas na liderança. À medida que os recursos vão diminuindo, elas serão as primeiras a perder os seus meios de subsistência, apesar de praticamente não terem uma palavra a dizer a respeito das decisões que as suas organizações tomam para lidar com esta crise. Temos de ser mais audazes na adoção das medidas de segurança social que exigimos aos governos e às empresas.

Sem confiança e autenticidade, as nossas organizações não conseguirão enfrentar os tremendos desafios a que todas elas – grandes e pequenas – terão de responder nos próximos anos. É notável que as organizações locais do Sul Global tenham sido as primeiras a adotar um Protocolo de Segurança Social para a Sociedade Civil, desenvolvido em linha com as orientações políticas da Organização Internacional do Trabalho no contexto da Covid-19.

Quatro anos após a comunidade internacional se ter comprometido com a “agenda para a localização da Ação Humanitária” , a percentagem de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) que chega diretamente à sociedade civil do Sul Global mantém-se no mesmo nível: menos de 1%. Isto significa que, apesar de as organizações locais estarem mais bem posicionadas para oferecer uma resposta duradoura a crises complexas como as pandemias, continuam lamentavelmente subfinanciadas. Para sairmos mais fortalecidos/as, precisamos de aumentar significativamente o investimento nas organizações da sociedade civil do Sul Global. 

A existência de condições favoráveis à atuação de organizações locais permitir-nos-á potenciar soluções centradas nas pessoas, necessárias para lidar com os desafios complexos e imprevistos da Covid-19. 

Por fim, a sociedade civil terá de melhorar significativamente as estratégias de modo a colocar os direitos humanos no centro das intervenções públicas. Precisamos de um esforço sério para desmantelar sistemas que perpetuam ciclos de pobreza, discriminação e violência, nomeadamente repensando a forma como as nossas economias estão estruturadas e assegurando meios de produção e consumo sustentáveis que permitam a regeneração dos recursos naturais.

A existência de condições favoráveis à atuação de organizações locais permitir-nos-á potenciar soluções centradas nas pessoas, necessárias para lidar com os desafios complexos e imprevistos da Covid-19.

O nosso indicador mais importante de progresso comum deverá basear-se nas transformações necessárias para construir um mundo mais favorável às gerações vindouras. Temos de dar reconhecimento àqueles/as que estão na linha da frente, que frequentemente são os/as menos valorizados/as na sociedade, mas que ajudarão a ultrapassar esta pandemia. 

O nosso grau de compromisso para a concretização destas reformas irá determinar, no futuro, a nossa relevância enquanto sociedade civil.

Este artigo foi originalmente publicado na Edição Especial da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2020 "A Pandemia de Covi-19 e os Desafios do Desenvolvimento". Leia ou faça download da edição completa aqui.

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