24 out 2022 Fonte: Concord Europe Temas: Ajuda Pública ao Desenvolvimento

A Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) é uma das ferramentas mais importantes para combater as desigualdades e 2021 deveria ter sido o ano para duplicar o esforço para combater os desafios globais. Em vez disso, 1€ em cada 6€ dos orçamentos de APD da UE e dos Estados-Membros não chegou às pessoas que mais precisam, como revela o 18º relatório AidWatch da CONCORD Europe.
Desde 2005, o relatório AidWatch monitoriza anualmente a quantidade e a qualidade da APD da UE e dos Estados-Membros, recordando-os do seu compromisso de dedicar pelo menos 0,7% do Rendimento Nacional Bruto (RNB) à APD até 2030. Em 2021, a APD da UE foi apenas 0,48% do seu RNB – um ligeiro declínio em termos relativos face aos 0,50% registados em 2020, mas um enorme fracasso, dada a situação social e económica resultante da crise pandémica. Em termos nacionais, a APD portuguesa ficou ainda mais longe da meta, tendo-se fixado em 0,18% do RNB – um aumento de 4% em termos absolutos face a 2020 (ano em que, em termos de percentagem do rendimento nacional, a APD portuguesa registou uns idênticos 0,18% do RNB).
Em 2021, a APD também foi mais propensa a não chegar onde é mais necessária. A APD inflacionada – ou APD que não contribui diretamente para o desenvolvimento sustentável nos países parceiros – aumentou para 11,8 mil milhões de euros, invertendo uma tendência decrescente de quatro anos.
O aumento da ajuda inflacionada não é surpreendente, segundo o relatório agora apresentado. Sem uma orientação clara do Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) da OCDE, os países doadores – depois de acumular 3,5 vezes mais vacinas COVID-19 do que o necessário para proteger a população da UE – passaram a reportar a “partilha” de doses excedentárias como APD, aumentando consideravelmente os números finais. “O cerne da questão é: as vacinas compradas com uma abordagem 'eu primeiro' e não com base num esforço genuíno para apoiar a vacinação global contra a COVID-19 em países parceiros não devem ser reportadas como tal”, afirma Réka Balogh, Diretora de Políticas da HAND, a Associação Húngara para o Desenvolvimento e Ajuda Humanitária.
No caso de Portugal, o reporte da doação de doses excedentárias de vacinas COVID-19 teve também um impacto significativo no aumento dos valores totais da APD em 2021[1]. A verba reportada por Portugal ao abrigo das várias iniciativas de partilha de vacinas com países parceiros representou, segundo o CAD/OCDE, cerca de 7% do total da APD portuguesa que, dessa forma, atingiu um montante global superior ao registado em 2020. Este aumento resultou, assim, de um contexto particular, não integrando ainda, e como se prevê, o compromisso estruturado de Portugal para o reforço do seu contributo em termos de financiamento para o desenvolvimento.
Além disso, a nível internacional, os atuais padrões de reporte de APD correm o risco de inflacionar ainda mais o que é entendido como ajuda. Por exemplo, os países doadores já se encontram a redirecionar fundos essenciais para responder ao fluxo de pessoas refugiadas provocado pela invasão russa da Ucrânia. É fundamental e urgente garantir os direitos e as necessidades das pessoas refugiadas e esses fundos devem ser novos e adicionais, não comprometendo o destino primeiro da APD.
Embora não exista ainda estimativa oficial sobre o impacto desta situação no caso concreto da APD portuguesa, a Presidente da Plataforma, Ana Patrícia Fonseca, deixa um apelo: “é importante que o auxílio que é prestado a todas as pessoas que veem em Portugal um lugar de acolhimento e refúgio seja efetivado com fundos novos e adicionais e que a APD portuguesa se concentre nos países parceiros da Cooperação Portuguesa, reforçando o nosso compromisso coletivo com o desenvolvimento global.”
Reportar custos com pessoas refugiadas nos países doadores (in-donor refugee costs) como APD inflaciona de forma artificial os números da mesma, sem que esse dinheiro seja realmente gasto nos países parceiros. Há, por isso, um longo caminho a percorrer para garantir que a APD chega onde é mais necessária. Apesar de nos encontrarmos em plena Década de Ação para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, os Países Menos Avançados (PMA) continuam a suportar o peso das crises, enquanto os países doadores continuam a não cumprir a meta de dedicar entre 0,15 e 0,20% do RNB da APD para os PMA. Apenas 0,12% do RNB dos Estados-Membros da UE foi para os PMA e apenas 3 dos 46 PMA estavam entre os 10 principais beneficiários da APD da UE.
As crises globais estão a dificultar o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, pelo que se levanta a seguinte questão: os 0,7% do RNB para APD – a meta estabelecida há mais de meio século, em 1970 – é suficiente? “A meta perdeu o nível de ambição que tinha até há uma década”, considera Lukas Goltermann, consultor de políticas da VENRO, a Associação Alemã de ONG de Desenvolvimento e Ajuda Humanitária. “Nos últimos anos, emergiram novos desafios globais que precisam urgentemente de respostas mais robustas por parte dos países desenvolvidos. A meta de 0,7% deve ser a base, não o topo”.
É tempo de reforçar a APD.
O relatório AidWatch 2022 pode ser consultado aqui.
[1] De acordo com os dados publicados pelo Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) da OCDE, Portugal reportou ter doado o equivalente a 29 milhões de dólares em doses excedentárias de vacinas COVID-19, e não reportou qualquer valor relativo à doação de doses especificamente adquiridas para países em desenvolvimento.
NOTAS ADICIONAIS:
- A CONCORD Europe é a Confederação Europeia de ONG que trabalham na área do desenvolvimento sustentável e na cooperação internacional, composta por 26 plataformas nacionais (incluindo a Plataforma Portuguesa das ONGD), 25 redes internacionais e 7 membros associados que representam mais de 2600 ONG, apoiadas por milhões de cidadãos em toda a Europa.
- A Plataforma Portuguesa das Organizações Não-Governamentais para o Desenvolvimento (ONGD) é uma associação privada sem fins lucrativos que representa um grupo de 64 ONGD registadas no Ministério dos Negócios Estrangeiros e é membro da CONCORD.
- Relatórios AidWatch: Desde 2005, a CONCORD publica o Relatório AidWatch, para monitorizar a qualidade e quantidade da ajuda ao desenvolvimento da UE. Mais informações.