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18 jun 2020 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Cooperação para o Desenvolvimento

Este artigo foi originalmente publicado na Edição Especial da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2020 "A Pandemia de Covi-19 e os Desafios do Desenvolvimento". Leia ou faça download da edição completa aqui.

 

Autor: Manuel Ennes Ferreira, professor do ISEG/Universidade de Lisboa

Nas últimas décadas, nomeadamente a partir do final do século passado, o sistema de cooperação internacional tem vindo a ser crescentemente testado, para não dizer desafiado. Uma das principais razões reside nas consequências que a globalização desenfreada tem introduzido nas relações internacionais abalando um status quo correspondente. 

A cooperação internacional deveria corresponder a uma verdadeira parceria global. Esta boa intenção, aprovada pelos Estados membros das Nações Unidas, está plasmada desde o início do século, primeiro nos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio e depois nos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável. E embora se possam assinalar resultados palpáveis e entusiasmantes aqui e ali, tal foi acompanhado pelo aprofundamento da desigualdade dentro e entre países.

Da cooperação internacional espera-se, por exemplo, uma atenção particular ao seu contributo para o acesso ao que se devem considerar bens públicos globais, ou seja, o reconhecimento de que a cooperação e a coordenação internacional são necessárias para a salvaguarda em termos nacionais. São exemplos que vão da educação ao meio ambiente, passando pela paz até à saúde. Por si só deveriam ser prioritários na cooperação internacional. Mas acresce, não sendo de somenos importância, que o efeito negativo que extravasa do espaço nacional para a comunidade internacional pode ser de tal ordem que põe em causa a estabilidade de todos. O exemplo dos nossos dias com a pandemia do Covid-19 ilustra este fio da navalha. 

Como encarar, então, estes mecanismos coletivos de coordenação de ações? O sistema de cooperação internacional deveria ser um jogo de soma positiva. Ele assenta nos interesses e objectivos de cada um dos participantes, mas a perspectiva egoísta não tem necessariamente que prevalecer. Como atrás se referiu, deveria ser do interesse global e de cada um dos Estados a estabilidade e o progresso individual e mundial. Não é novidade nenhuma dizer que estamos longe disso. 

(…) deveria ser do interesse global e de cada um dos Estados a estabilidade e o progresso individual e mundial. Não é novidade nenhuma dizer que estamos um longe disso.

A cooperação internacional faz-se de forma bilateral e multilateral. A importância que individualmente cada país tem nas relações internacionais cria logo à partida um desequilíbrio, talvez mais notório na relação directa que estabelece com os outros Estados. A sua importância é assinalável e cobre todas as áreas de cooperação. Embora por vezes menos visível, mas existente, será a influência nas instituições internacionais. O que tem acontecido é que não têm sido poucas as vezes em os seus interesses económicos e geoestratégicos acabam por condicionar o seu envolvimento mais desinteressado naquelas instituições. O caso mais paradigmático e recente é a forma como os Estados Unidos têm olhado para o sistema de cooperação internacional, demitindo-se… o unilateralismo e o isolamento têm sido a sua resposta. Este é talvez o exemplo mais acabado de como efeitos da globalização e que têm alterado as relações de poder internacional podem ter efeitos no sistema de cooperação internacional. O destrato com que os EUA têm afrontado as Nações Unidas é de espantar. A diminuição do seu envolvimento, por exemplo, na OMC, na Unesco ou na OMS, é inaceitável.

A reconfiguração das relações internacionais a que temos assistido neste século implica novas adaptabilidades . Os países emergentes, com a China à cabeça, vieram para ficar e o reconhecimento disso mesmo foi a assumpção, em 2008, do papel pivot que o G20 deve desempenhar. As respostas às crises de 2008 e 2014 exigiam coordenação e engajamento de toda a comunidade internacional. Com ligeireza diz-se que a pandemia do Covid-19 é democrática porque atinge todos os países e todas as classes sociais. O mesmo se quis dizer com as consequências daquelas duas crises. Não, não é verdade. O grau de preparação para enfrentar os danos em todas as áreas sejam económicas, financeiras ou comerciais, sejam educacionais, sanitárias ou ambientais é muitíssimo diferente. E sem cooperação internacional todos têm a perder, é certo que uns mais do que outros.

Olhando em particular para os países em desenvolvimento, a pandemia do Covid-19 traz à tona as suas debilidades estruturais. O fardo da dívida externa, por exemplo, é incompatível com o esforço financeiro que terão de fazer para sustentar as suas economias e sistemas sociais. Problemas ligados ao desemprego, refugiados, meio ambiente e estabilidade política correm o sério risco de atingir pontos de ruptura. O sistema institucional de cooperação internacional será uma vez mais posto à prova e terá de arranjar soluções adequadas. Excelente oportunidade uma vez que o perigo é desta vez global? Isto deve envolver todos. Há obviamente uma necessidade de reformar a ONU, adaptando-a e tornando-a voz da universalidade e não isolando-a. No mesmo sentido, as regras e prioridades do FMI e do Banco Mundial devem ser reequacionadas. Bilateralmente, e simplificando, dos EUA à China passando pela União Europeia todos eles devem seguir aquele princípio que diz que a única situação admissível em que alguém olha de cima para baixo para o outro é quando lhe estende a mão para o levantar. E, finalmente mas não esgotando os exemplos, um maior empenhamento e respeito pelos compromissos assumidos no âmbito da ajuda pública internacional. Se a melhoria da eficácia da prestação da ajuda tem sido preocupação crescente, também o cumprimento pela meta dos 0.7% do rendimento nacional bruto anual por parte dos países doadores deve ser alcançado, invertendo os 0.3% actuais.

(...) se a cooperação internacional nunca devia ter tido um momento de descanso para responder às necessidades individuais e globais, os tempos actuais evidenciam em toda a linha a sua extrema necessidade

É difícil fazer previsões sobre as consequências da corrente pandemia e em particular sobre o sistema de cooperação internacional. O abanão que assola todos os países do mundo não terá efeitos simétricos. Pelo contrário, será profundamente assimétrico. Demorará muitos anos até que dezenas de países em desenvolvimento voltem à sua situação pré-Covid-19 e que já era angustiante. A probabilidade de que superada esta pandemia seja ‘business as usual’ é grande. Se assim for, e espera-se que não, no panorama económico e geoestratégico internacional a marginalização dos países em desenvolvimento, com destaque para África, agravar-se-á.   

Em suma, se a cooperação internacional nunca devia ter tido um momento de descanso para responder às necessidades individuais e globais, os tempos actuais evidenciam em toda a linha a sua extrema necessidade . Por uma vez se pode pensar que é um excelente momento de reflexão para encontrar caminhos mais inclusivos na cooperação internacional e geradores de maior equidade global. Não é certo, mas o Covid-19 pode eventualmente ter despoletado a consciência disso. 

Este artigo foi originalmente publicado na Edição Especial da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2020 "A Pandemia de Covi-19 e os Desafios do Desenvolvimento". Leia ou faça download da edição completa aqui.

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