26 jun 2020 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Pobreza e Desigualdades
Este artigo foi originalmente publicado na Edição Especial da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2020 "A Pandemia de Covid-19 e os Desafios do Desenvolvimento". Leia ou faça download da edição completa aqui.
Autora: Lonne Poissonnier, coordenadora de política e advocacy na CONCORD Europe
O nosso mundo enfrenta atualmente uma crise. A pandemia de COVID-19 expôs e exacerbou brutalmente várias formas de desigualdades dentro e entre diferentes países, formas essas que não podemos continuar a ignorar. Como os/as muito ricos/as têm mais recursos para se proteger do impacto financeiro e económico do que o resto da população, as disparidades ao nível da riqueza e do rendimento aumentam ainda mais. O acesso a serviços básicos muito necessários varia dentro da população, a discriminação aumenta e as normas socialmente construídas podem privilegiar alguns grupos em detrimento de outros, como vemos, por exemplo, com os papéis atribuídos em função do género. Em todo o mundo, as pessoas e os estados têm um acesso desigual aos processos de decisão política e o espaço da sociedade civil é cada vez mais reduzido. Juntamente com os impactos desiguais das alterações climáticas e com alguns problemas ambientais associados à COVID-19, estas várias formas de desigualdades aumentam consideravelmente o risco de adiamento ou retrocesso na implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
Podemos vir a confrontar-nos com um retrocesso de 10 anos na redução da pobreza a nível mundial. Em algumas regiões, este retrocesso pode inclusivamente atingir os 30 anos [1]. No outro lado do espectro, os/as bilionários/as, apesar de também não estarem imunes, podem proteger-se muito mais facilmente. Nalguns casos, as suas fortunas até aumentaram desde o início do surto de COVID-19. Se, ao sair desta crise, percorrermos um caminho semelhante ao que trilhámos na sequência da crise financeira de 2008, após o qual as pessoas mais ricas do mundo recuperaram rapidamente o que perderam e até duplicaram as suas fortunas, o fosso entre os 1% mais ricos do mundo e os restantes 99% vai atingir proporções cósmicas[2].
Durante as últimas décadas, as políticas de austeridade impostas pelas instituições financeiras internacionais enfraqueceram os serviços e sistemas públicos, inclusivamente no setor da saúde . Mas a crise que enfrentamos agora mostra a importância de um estado que funcione bem e que seja capaz de prestar serviços públicos essenciais e inclusivos a toda a população. Salvar os sistemas sociais das situações difíceis que enfrentam atualmente, realizar os resgates económicos necessários e assegurar a resposta de emergência provocará buracos gigantescos nos orçamentos públicos e aumentos na dívida pública. No futuro, temos de evitar a todo o custo que, por uma questão de ortodoxia fiscal, se crie um ciclo vicioso com mais medidas de austeridade que afetam as áreas-chave do combate às desigualdades, como a saúde, educação e proteção social, água, saneamento ou alojamento.
Durante as últimas décadas, as políticas de austeridade impostas pelas instituições financeiras internacionais enfraqueceram os serviços e sistemas públicos, inclusivamente no setor da saúde
Neste momento, existem milhões de pessoas sem trabalho e que não têm por isso qualquer rendimento. A Organização Internacional do Trabalho avisou que quase 2,7 mil milhões de trabalhadores/as estão a ser afetados pela COVID-19 em todo o mundo e 25 milhões de empregos podem ser perdidos. Os/As trabalhadores/as precários/as estão a ser levados/as até aos seus limites, os sistemas de proteção social não conseguem proteger os grupos mais vulneráveis, e os/as jovens trabalhadores/as e pequenas e médias empresas estão a ser profundamente atingidos pelas repercussões económicas[3]. As consequências para o mercado de trabalho e para a situação dos/as trabalhadores/as serão severas, com riscos óbvios para os direitos destes/as últimos/as nas cadeias de valor globais,, como podemos já observar, por exemplo, no setor do vestuário no Sudeste Asiático, no cultivo de flores na África Oriental ou no setor mineiro na América do Sul[4] .
Em termos ambientais, o coronavírus mostra como a perda de ecossistemas e a sobre-exploração dos recursos naturais no Sul Global aumentam o risco de surtos de doenças zoonóticas, como o Ébola, SIDA, SARS, MERS, zica, gripe aviária e gripe suína[5]. Além de tudo isto, enfrentamos retrocessos provocados pelas políticas de combate ao coronavírus em diferentes países, como limites de emissões poluentes menos exigentes ou a suspensão temporária de regulamentações ambientais, que podem aumentar ainda mais a desigualdade ambiental[6] .
Politicamente, esta crise está a ser utilizada como uma oportunidade para consolidar o poder e legitimar a adoção de medidas repressivas em regimes autoritários, através da invocação de uma ameaça nacional existencial. Outros exemplos, em democracias, incluem medidas de emergência relacionadas com a saúde pública, como declarações de estados de emergência ou medidas que aumentam a vigilância aos/às cidadãos/ãs e contribuem para uma menor transparência, inclusão e responsabilização[7].
Devemos aproveitar esta oportunidade para nos afastarmos do foco global no crescimento do PIB, com a consciência de que este indicador pouco contribui para criar bem-estar para todos/as
O novo coronavírus acentua assim as desigualdades existentes em todas as quatro dimensões do desenvolvimento sustentável: económica, social, política e ambiental. É fundamental compreender como estas dimensões se relacionam entre si para combater eficazmente estas desigualdades. Diferentes grupos de pessoas são afetados de formas distintas pela pandemia e pelos seus efeitos secundários. Mulheres e raparigas, crianças, pessoas com deficiências, migrantes e refugiados/as, países no Sul Global, idosos/as, pessoas com problemas de saúde, pobres, minorias étnicas, povos indígenas, entre muitos, muitos outros. E também as diferentes identidades sociais (por exemplo, género, raça, capacidade, idade, rendimento, orientação sexual, etnicidade, religião ou crença, estado socioeconómico ou migratório), que são muitas vezes fatores discriminatórios. Tudo isto se interseta e sobrepõe, resultando no aumento das restrições e privações, as quais, por seu turno, perpetuam e consolidam as desigualdades.
Para a CONCORD [8] , o combate às desigualdades deve ser uma clara prioridade na UE e nos seus Estados-Membros, com ações direcionadas e claramente presentes em todas as políticas, programas e acordos de parceria. Devemos aproveitar esta oportunidade para nos afastarmos do foco global no crescimento do PIB, com a consciência de que este indicador pouco contribui para criar bem-estar para todos/as, não fomenta o investimento nas áreas onde é realmente necessário e é extremamente vulnerável a choques. Esta crise dá-nos uma oportunidade de promovermos um desenvolvimento económico sustentável e inclusivo: dar prioridade às micro, pequenas e médias empresas e também a empresas guiadas por uma missão (por oposição às empresas que têm unicamente fins lucrativos), exigindo mais delas em termos sociais e ambientais. Devemos forjar um caminho rumo a um mundo mais igualitário e sustentável, onde todos/as estejamos preparados/as e consigamos enfrentar coletivamente os desafios com que nos deparamos, a partir de uma posição de força e solidária.
Consulte o documento “EU global response to COVID-19 – forging a path towards an equitable future” (Resposta global da UE à COVID-19: forjar um caminho rumo a um futuro equitativo) da CONCORD para obter mais informações.
Notas:
[1] https://www.wider.unu.edu/publication/estimates-impact-covid-19-global-poverty
[2] https://www.oxfamindia.org/blog/coronavirus-and-inequality
[3]https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/@dgreports/@dcomm/documents/briefingnote/wcms_740877.pdf ; https://www.ilo.org/global/about-the-ilo/newsroom/news/WCMS_738742/lang--en/index.htm ; https://iloblog.org/2020/03/20/precarious-workers-pushed-to-the-edge-by-covid-19/ ; https://www.ilo.org/global/about-the-ilo/newsroom/news/WCMS_739678/lang--en/index.htm ; https://www.euractiv.com/section/economy-jobs/news/ilo-warns-of-devastating-consequences-of-covid-19-on-labour-markets/?utm_source=EURACTIV&utm_campaign=1df78f178c-RSS_EMAIL_EN_Daily_Update&utm_medium=email&utm_term=0_c59e2fd7a9-1df78f178c-114974295; https://iloblog.org/2020/04/15/young-workers-will-be-hit-hard-by-covid-19s-economic-fallout/
[4] http://www.industriall-union.org/covid-19-an-existential-crisis-for-the-garment-industry
[5] https://wwf.be/assets/IMAGES-2/CAMPAGNES/COVID-19/the-loss-of-nature-and-rise-of-pandemics-protecting-human-and-planetary-health.pdf
[6] https://www.forbes.com/sites/nishandegnarain/2020/04/16/ten-areas-where-covid-19-responses-are-leading-to-environmental-setbacks/#14211d094252
[7] http://epd.eu/2020/04/06/joint-statement-democratic-principles-in-a-time-of-crisis/
[8] https://concordeurope.org/
Este artigo foi orginalmente publicado na Edição Especial da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2020 "A Pandemia de Covi-19 e os Desafios do Desenvolvimento". Leia ou faça download da edição completa aqui.