04 nov 2020 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Ajuda Humanitária e de Emergência
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de outubro de 2020 "Perspetivas para o Futuro da Cooperação Portuguesa". Leia ou faça download da edição completa aqui.
Autora: Raquel Freitas, Investigadora e Professora Auxiliar Convidada, ISCTE-IUL
A Ação Humanitária e de Emergência (AHE) é regida por um conjunto específico de princípios que devem orientar qualquer intervenção deste tipo. Tal deve-se à especificidade das situações que requerem assistência humanitária a países atingidos por catástrofes naturais, calamidades, epidemias, ou situações causadas pelo homem como conflitos ou violações generalizadas de direitos humanos.
Em qualquer dos casos um aspeto comum merece enfoque acrescido, que é a particular vulnerabilidade das populações afetadas e a necessidade de garantir não só a assistência material que assegure as possibilidades de sobrevivência em condições dignas, mas também a proteção internacional que possa ser necessária.
Existe um conjunto vasto de princípios e normas de orientação internacionais no âmbito da AHE, com diferentes graus de vinculação jurídica, mas todos eles imperativos não só de um ponto de vista ético-político, mas também do ponto de vista da própria efetividade da ação humanitária.
A humanidade, neutralidade, independência, imparcialidade são alguns dos princípios que procuram garantir que a AHE é desenvolvida no respeito pela dignidade humana e orientada pelas necessidades sentidas . Garantem também que os agentes nela envolvidos desenvolvem as suas ações de uma forma autónoma em relação aos interesses e dinâmicas políticas, económicas, militares ou outras que operem no terreno ou mesmo ao nível dos doadores. Só assim se assegura que a AHE não seja instrumentalizada para fins políticos e que não acrescenta impactos negativos (do no harm) aos que já afligem o país e a população afetada.
Portugal possui uma estratégia operacional em AHE, aprovada em 2015. No entanto a prática tem-se pautado por decisões políticas ad hoc
A observação destes e outros princípios internacionais é particularmente premente no caso de assistência a países onde a capacidade de resposta é por vezes menos robusta e a necessidade de assistência internacional é maior. Nalguns casos mais extremos, a própria cooperação com o governo do país afetado revela-se minada por obstáculos de ordem política que tornam a AHE ainda mais complexa e sensível. Portugal possui uma estratégia operacional em AHE, aprovada em 2015. No entanto a prática tem-se pautado por decisões políticas ad hoc sobre onde e como responder a situações de crise, colocando em causa o respeito pelos princípios humanitários. Ainda nesta linha, verifica-se a falta de orientações claras relativamente à utilização de recursos militares e de proteção civil que garanta a conformidade com os princípios internacionais.
A AHE por si só é apenas um paliativo em situações que muitas vezes têm uma natureza complexa e requerem esforços mais sustentáveis que contribuam para reduzir vulnerabilidades crónicas. Assim, tem havido uma tendência crescente para integrar os esforços humanitários nos de cooperação para o desenvolvimento (CD), almejando uma abordagem consistente que não deixe áreas cinzentas ou populações sem resposta (leave no one behind).
Muito embora ambos constituam eixos de uma área de intervenção específica da ação externa, a AHE e a CD têm características distintas. A AHE caracteriza-se por tempos curtos nas intervenções, ações com base em protocolos de resposta previamente definidos, mas com um elevado índice de flexibilidade em função das necessidades, e uma neutralidade em relação às disputas ou dinâmicas políticas existentes no terreno. Por seu turno, a CD caracteriza-se por tempos em geral mais longos, uma programação mais estruturada, mas também menos flexível. Envolve uma mais forte articulação com os agentes locais a vários níveis, com a vantagem de permitir um melhor conhecimento da realidade no terreno e um maior envolvimento das populações nos próprios processos de decisão/programação/avaliação. No entanto nalgumas situações tal proximidade política acarreta uma potencial incompatibilidade com os princípios humanitários.
Muito embora ambos constituam eixos de uma área de intervenção específica da ação externa, a AHE e a CD têm características distintas
Portugal tem feito um reconhecido esforço no sentido de uma maior integração entre a AHE e CD. Tal ajustamento deve ser feito em função das especificidades de cada uma delas, tirando partido das respetivas mais-valias, mas também respeitando as diferentes prerrogativas que lhes são inerentes. A AHE não pode constituir um instrumento de política externa ou económica, e deve ser disponibilizada em função das necessidades identificadas pelas autoridades locais e outros agentes responsáveis pela resposta humanitária, incluindo as próprias populações, que devem ser plenamente envolvidas nos processos. É também fundamental um reforço, não só do financiamento atribuído a esta área, mas também da previsibilidade e clarificação dos critérios de atribuição, que até agora têm sido bastante vagos.
O Comité de Auxílio ao Desenvolvimento (CAD-OCDE) tem salientado a falta de identificação da vantagem comparativa de Portugal na área da AHE. A forte ligação entre Portugal e os países parceiros em vários setores técnicos pode ser aproveitada no sentido de um maior investimento no setor humanitário ao nível da prevenção e mitigação de riscos e preparação de planos de resposta de emergência. Existe ainda um excelente potencial em diversos setores como a proteção civil, emergência médica e outras entidades, designadamente da sociedade civil, com experiência na participação em esforços de assistência internacional. Importa capitalizar sobre esses potenciais de forma sustentada e capacitar as instituições para assumir mais atuação com competência específica no setor humanitário e melhorar os instrumentos de coordenação. A capacitação dos nossos profissionais para atuar no setor humanitário assume uma importância fundamental. Nos últimos anos tem-se registado um aumento da oferta académica a este nível e também um aumento da procura de formação específica nesta área. Seria desejável aumentar também a investigação e a massa crítica de profissionais portugueses a trabalhar no setor.
Finalmente destaca-se a questão migratória, que na Europa tem assumido uma vertente humanitária particularmente preocupante devido à escala e complexidade dos fluxos, aos quais até agora não tem sido dada uma resposta efetiva. É importante que a ação humanitária não se torne substituto à possibilidade de procurar asilo, e Portugal deve continuar a pugnar por uma política nacional e europeia respeitadora dos compromissos internacionais. Neste aspeto é muito importante a informação e esclarecimento da opinião pública, por forma a evitar preconceitos e estigmas, área onde a sociedade civil no seu conjunto (ONG, media, universidades) tem um papel fundamental, e cujas ações devem ser apoiadas.
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de outubro de 2020 "Perspetivas para o Futuro da Cooperação Portuguesa". Leia ou faça download da edição completa aqui.