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09 jul 2020 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Agenda 2030, Cooperação para o Desenvolvimento

Este artigo foi originalmente publicado na Edição Especial da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2020 "A Pandemia de Covi-19 e os Desafios do Desenvolvimento". Leia ou faça download da edição completa aqui.

 

Autor: Alexandre Abreu, Professor do ISEG, U. Lisboa

A crise provocada direta e indiretamente pela epidemia do novo coronavírus tem um caráter verdadeiramente global. Em inícios de maio de 2020, a pandemia chegou já a 187 países e territórios, havendo apenas cerca de uma dezena de pequenos estados sem casos detetados1 . Entre março e abril, mais de uma centena de estados impuseram confinamentos totais ou parciais, chegando a abranger mais de um terço da população mundial – para cima de dois mil milhões de pessoas – durante largas semanas2 . Estimativas recentes apontam para que a queda do PIB mundial em 2020 seja de pelo menos 3%, bastante superior à verificada em 2009, ou até mais do que isso se assistirmos a novas vagas de contágio e confinamento3 . A Organização Internacional do Trabalho (OIT) alertou no final de abril que 1600 milhões de trabalhadores – metade da força de trabalho global - correm risco imediato de se verem privados das suas fontes de rendimento4 .

No que se refere à epidemia propriamente dita, os países do Sul global parecem até ao momento estar a ser menos afetados do que os países industrializados. À data de 10 de maio de 2020, temos de percorrer a lista dos países com mais casos registados até ao oitavo lugar para encontrarmos o primeiro país em desenvolvimento: o Brasil. Nesta mesma data, o continente africano como um todo conta com um número de casos confirmados (60 mil) pouco maior do que a Bélgica (50 mil)5. Porém, é também conhecida a enorme incerteza que rodeia todos estes números: é possível que certos fatores demográficos ou climáticos proporcionem alguma proteção a muitos países em desenvolvimento, mas é igualmente possível que a imagem estatística de que dispomos neste momento seja muito incompleta, subestimando a real incidência da doença nestes países. 

Já no que toca à dimensão socioeconómica desta crise, em contrapartida, não há dúvida de que os países em desenvolvimento estão já a ser muito fortemente afetados . Os canais de transmissão são vários e em muitos países atuam em simultâneo. O primeiro, e mais imediato, é o impacto do confinamento sobre as fontes de rendimento e estratégias de subsistência de milhares de milhões de pessoas. Este impacto é especialmente dramático nas economias emergentes e em desenvolvimento, nas quais os trabalhadores informais constituem cerca de de 70% da força de trabalho6.  No contexto atual, muitos estão a um curto passo da pobreza.

(...) no que toca à dimensão socioeconómica desta crise, em contrapartida, não há dúvida de que os países em desenvolvimento estão já a ser muito fortemente afetados

Um segundo canal é a queda do preço das matérias-primas, de cuja exportação dependem fortemente muitas economias em desenvolvimento, em resultado da crise global e da redução da procura. Com exceção do ouro, que é um ativo de refúgio por excelência, o preço da maioria das matérias-primas tem caído significativamente em 2020 - incluindo o petróleo, de forma espetacular7. O efeito líquido para cada país depende de ser exportador ou importador líquido de cada matéria-prima, mas para a maioria dos países em desenvolvimento isto não são boas noticias – e para alguns, como os exportadores de petróleo, é desastroso.

Um terceiro canal é a fuga de capitais das economias emergentes e em desenvolvimento, resultante da tendência dos investidores internacionais para se refugiarem em ativos com menos risco em situações de crise. Entre janeiro e meados de abril, a fuga líquida de capitais a partir dos países em desenvolvimento ascendeu a 100 mil milhões de dólares, cinco vezes mais do que aquando da crise de 2008-098. Para além de agravarem as dinâmicas locais de deflação, falência e recessão, estes fluxos abruptos de saída provocam a depreciação das moedas locais, o que faz aumentar o peso da dívida externa denominada em moeda estrangeira, precipitando crises cambiais e crises de dívida.

E um quarto canal é a quebra dos fluxos de remessas dos migrantes internacionais, que habitualmente constituem uma bóia de salvação crítica em contextos de crise. O mesmo não está a suceder desta vez, já que a crise está a atingir os países de origem e de destino ao mesmo tempo e em muitos casos a afetar especialmente os trabalhadores imigrantes. O Banco Mundial prevê que o fluxo total de remessas internacionais sofra em 2020 uma quebra de 20%, sem precedente no passado recente9.

Considerando todos estes impactos, uma estimativa da UNU-WIDER aponta para que o número de pessoas em situação de pobreza a nível mundial possa aumentar em 500 milhões em resultado desta crise. Se assim for, será a primeira vez em mais de trinta anos que a taxa de pobreza global aumenta em vez de diminuir, deitando a perder uma década de progressos a este nível10.  O risco de retrocesso social e económico é enorme: por si só, esta crise tem o potencial de assegurar o insucesso da Agenda 2030 nas suas várias dimensões. É por tudo isto que muitas vozes começam já a apelar a um pacote de resgate de grandes dimensões para os países em desenvolvimento – como a UNCTAD, que apelou à mobilização de 2,5 biliões de dólares para este efeito. Para já, porém, estamos muito longe de uma resposta à altura. Aliás, receia-se até que os constrangimentos orçamentais que irão pesar sobre os países doadores exerçam pressão adicional sobre a ajuda e a cooperação internacionais.

O mundo que emergirá após a pandemia de Covid-19 será com certeza bastante diferente. Nalguns aspetos, é possível que esta crise venha a desencadear mudanças sistémicas para melhor. Mas neste momento, para os países do Sul global, esta crise é uma tempestade perfeita que está a ameaçar seriamente a subsistência, a segurança humana e a prosperidade.
 

Notas:

[1] Al Jazeera (2020), “Coronavirus: which countries have confirmed cases?”, 11/05/2020.
[2] Buchholz, Katharina (2020), “What share of the world population is already on COVID-19 lockdown?”, Statista, 23/04/2020.
[3] IMF (2020), World Economic Outlook, April 2020.
[4] ILO (2020) ILO Monitor third edition: COVID-19 and the world of work, 29/04/2020.
[5] https://www.worldometers.info/coronavirus/
[6] Chandrasekhar, C. and Ghosh, J. (2020), “Informal workers in the time of Coronavirus”, Real-World Economics Review Blog, 26/03/2020.
[7] World Bank (2020), “Most commodity prices to drop in 2020 as coronavirus depresses demand and disrupts supply”, Press Release, 23/04/2020.  
[8] Gatak, M., Jaravel, X. & Weigel, J. (2020), “the world has a $2.5 trillion problem. Here’s how to solve it”, New York Times, 20/04/2020.
[9] World Bank (2020), “World Bank predicts sharpest decline in remittances in recent history”, Press Release, 22/04/2020.  
[10] Sumner, A., Hoy, C. & Ortiz-Juarez, E. (2020), “Estimates of the imact of COVID-19 on global poverty”, WIDER Working Paper 2020/43, UNU-WIDER.

 

Este artigo foi orginalmente publicado na Edição Especial da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2020 "A Pandemia de Covi-19 e os Desafios do Desenvolvimento". Leia ou faça download da edição completa aqui.

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