13 abr 2022 Fonte: Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Cooperação para o Desenvolvimento, Paz e gestão de Conflitos
A invasão da Rússia à Ucrânia desencadeou uma guerra terrível que continua a causar sofrimento a milhões de pessoas. O impacto mais imediato da situação que se vive é, evidentemente, nas pessoas que são diretamente afetadas pelo conflito armado. Contudo, o impacto da guerra vai muito além das fronteiras da Ucrânia e coloca desafios importantes aos sistemas de alimentação de várias regiões. Também aqui, a solidariedade global deve ter um papel determinante na mitigação das consequências globais da guerra.
A guerra e o aumento da fome e da pobreza
Durante décadas, a Europa habituou-se a viver em paz. A eclosão (muitas vezes, perpetuação) de conflitos mantinha-se fora das suas fronteiras e, embora contando frequentemente com o envolvimento militar de atores europeus, a guerra mantinha-se longe de dominar os espaços mediáticos tal como tem acontecido com o conflito na Ucrânia. A invasão do exército russo veio concentrar a atenção no que se passa a leste. Os impactos da guerra, contudo, vão muito além das fronteiras.
Conhecida como “o celeiro da europa”, a Ucrânia foi em 2021 a maior fonte de fornecimento de produtos alimentares no âmbito do Programa Alimentar Mundial (PAM). Juntas, a Rússia e a Ucrânia produzem 30% do volume mundial de trigo – que, por ser o mais barato do mercado, abastece grande parte dos países de baixo rendimento –, sendo que metade da importação de trigo de áfrica vem precisamente destes países. Isto significa que o sistema alimentar mundial, em particular nas regiões com mais insegurança alimentar, é altamente dependente destes dois países atualmente em guerra.
A situação que vivemos, em que ao conjunto de desafios provocados pela pandemia se juntou os impactos da guerra – entre os quais o aumento substancial no preço dos produtos alimentares essenciais (com o preço de produtos como o milho e o trigo a registar aumentos de quase 20% durante o mês de março) -, já deu origem a previsões potencialmente gravíssimas. A OXFAM espera que, até ao final de 2022, 250 milhões de pessoas se juntem ao grupo daqueles que já vivem abaixo do limiar da pobreza extrema. A ONU, por sua vez, estima que só o impacto desta guerra no mercado dos alimentos poderá fazer 7,6 a 13,1 milhões de pessoas passarem fome. O impacto da guerra aumentará a pobreza e abrandará o crescimento económico também nos países em desenvolvimento no leste da Ásia e no Pacífico, segundo o Banco Mundial.
Os últimos dois anos, marcados pelo combate à propagação da Covid-19, tiveram enormes consequências em países de rendimento médio/baixo, onde se têm notado enormes lacunas em termos de financiamento e agravado situações de pobreza e crise socioeconómica. Em países com conflitos ativos e altamente dependentes de ajuda humanitária para mitigar situações de fome extrema (como o Iémen e o Afeganistão, onde a escassez de bens alimentares provoca mais vítimas do que as operações militares), não é difícil compreender que o impacto da situação na Ucrânia vai muito além das suas fronteiras.
Noutros contextos, em países dependentes da importação de cereais da Ucrânia e da Rússia, têm sido adotadas medidas temporárias para controlar a subida dos preços deste tipo de produtos. Contudo, o esforço orçamental que este tipo de medidas implica poderá ter consequências severas na capacidade financeira dos estados, já fragilizada depois de dois anos de pandemia.
A Solidariedade Global é central para encontrar soluções
O papel da comunidade internacional e das organizações multilaterais é essencial na construção de uma solução que acabe com a guerra na Ucrânia, pois qualquer solução duradoura depende necessariamente de se conseguir encontrar um caminho para a paz. Porém, importa também refletir sobre a importância da cooperação internacional e da solidariedade global na mitigação do impacto da guerra além das fronteiras ucranianas.
Infelizmente, são já vários os países que anunciaram a suspensão de fundos já orçamentados no âmbito da cooperação para responder à situação humanitária na Ucrânia. Na prática, isto pode significar que uma parte significativa dos fluxos canalizados para Ajuda Pública ao Desenvolvimento por parte dos Estados-Membros do CAD/OCDE e previamente destinada a financiar a implementação de programas nos países parceiros seja reorientada para custear o acolhimento a refugiados dentro dos próprios países. Não se trata de pôr em causa a necessidade de canalizar recursos financeiros para responder ao absolutamente necessário acolhimento de refugiados. Trata-se não só de evitar diminuir, como também aumentar, os fundos necessários para mitigar os impactos negativos da guerra noutras regiões vulneráveis e marginalizadas. Trata-se também, a longo prazo, de investir em sistemas alimentares mais resilientes de forma a “proteger melhor os países propensos à fome contra os perigos de um sistema alimentar global altamente liberalizado e integrado”.
A construção da paz dependerá sempre da capacidade em afirmar a solidariedade global enquanto pilar central na resposta dos países aos desafios que enfrentamos. Com efeito, o caminho para uma solução de paz será tão mais consistente quanto maior a capacidade em responder de forma abrangente aos impactos da guerra dentro e fora da Ucrânia. Para que tal seja possível, é fundamental reforçar a capacidade das organizações multilaterais (em particular das agências das Nações Unidas) para responder a situações de emergência humanitária em várias regiões do mundo e robustecer os orçamentos da cooperação, rumo a um futuro mais justo e sustentável para todos e todas.