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14 nov 2024 Fonte: Victor Ângelo Temas: Paz e gestão de Conflitos

Este artigo foi originalmente publicado na Edição nº 27 (novembro de 2024) da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD: "Um Mundo em Mudança: que espaço para a Cooperação?". Leia ou faça download da Revista aqui.

Por Victor Ângelo, Ex-Secretário-Geral-Adjunto da ONU / Representante Especial do Secretário-Geral para as Operações de Paz

Hoje, contrariamente ao que acontecia em 1945, o ano da fundação da ONU, vivemos num mundo profundamente interconectado. Uma crise num ponto do globo acaba frequentemente por ter repercussões noutras partes do nosso planeta, seja porque põe em causa a estabilidade e a segurança de outros, muito para além das fronteiras do país em que ocorre, ou por provocar fenómenos migratórios de grande envergadura, catástrofes humanitárias, divisões muito sérias na cena internacional, ou ainda movimentos armados, violentos e muitas vezes terroristas. Vivemos desde o início do século um período de grandes transformações na arena mundial, de perigos e desafios altamente complexos e profundamente ameaçadores. Tudo isto questiona a autoridade das organizações internacionais, e em especial, a dimensão da paz e segurança das Nações Unidas.

Vivemos desde o início do século um período de grandes transformações na arena mundial, de perigos e desafios altamente complexos e profundamente ameaçadores. Tudo isto questiona a autoridade das organizações internacionais, e em especial, a dimensão da paz e segurança das Nações Unidas.

Na verdade, temos estado a assistir à erosão desse pilar fundamental da ONU. Nos últimos dez anos, não foi aprovada nenhuma nova operação de manutenção da paz da ONU – a missão que acaba de se iniciar no Haiti é acima de tudo uma missão de polícia, exercida por militares e com um mandato estranho, sem enquadramento político nem uma definição clara da estratégia de transferência gradual das suas responsabilidades para as instituições do país. Durante o mesmo período, assistimos à retirada das missões em vários países, incluindo no Mali, e ao fecho de várias iniciativas de mediação política.

A ONU tem, todavia, um âmbito mais vasto e todo um conjunto de agências, programas e fundos que desempenham um papel positivo. Essas componentes do sistema onusiano são especialmente apreciadas nos países em desenvolvimento, pelo reforço que oferecem às instituições públicas desses estados, bem como às organizações da sociedade civil. É aí que se vê o multilateralismo em ação e a obter resultados. Na maioria dos casos, a dificuldade principal é financeira: as contribuições para as suas atividades são feitas pelos estados-membros de modo voluntário. E a angariação de fundos tem muitos candidatos em competição, dentro e fora do sistema. É uma matéria bastante complexa, as necessidades são imensas e variadas, enquanto os orçamentos dos doadores têm sofrido reduções importantes. Para além disso, existem outras dimensões, que nem sempre são corretamente entendidas, e que dizem respeito a questões de legitimidade, de credibilidade, de neutralidade e de capacidade operacional. Maior transparência nessas matérias ajudaria fortemente o trabalho de todos e uma maior compreensão sobre a importância da cooperação multilateral.

É importante, no entanto, não esquecer que a ONU foi estabelecida há cerca de oito décadas para garantir a paz e permitir a resolução dos conflitos entre as nações por meios pacíficos. A Carta das Nações Unidas, embora tenha sido aprovada num momento histórico muito diferente do atual – por 50 estados-membros, quando a ONU é hoje integrada por 193 membros – é bastante clara sobre a primazia que dá às questões da paz. Com o tempo e as independências nacionais, tornou-se imperativo reconhecer de igual modo a importância das questões do desenvolvimento e dos direitos humanos. Paz, desenvolvimento e o respeito pela dignidade humana tornaram-se os três pilares centrais da organização. Isso não quer dizer que as questões normativas, a definição de regras técnicas, da aviação civil às questões da propriedade intelectual, ou o trabalho humanitário, sanitário, educacional e noutras áreas tenha um significado menor. Essas são áreas em que as decisões multilaterais são indispensáveis para o bom funcionamento dos sectores económicos e sociais a que dizem respeito.

Com o tempo e as independências nacionais, tornou-se imperativo reconhecer de igual modo a importância das questões do desenvolvimento e dos direitos humanos. Paz, desenvolvimento e o respeito pela dignidade humana tornaram-se os três pilares centrais da organização.

Mas quando se fala das Nações Unidas está-se sobretudo a pensar no papel político da organização, ou seja, na manutenção da paz entre os povos. O Secretário-Geral e o Conselho de Segurança são vistos, acima de tudo, a partir do prisma político. É aí que se mede o sucesso das suas intervenções. Ambos têm de assegurar que a prevenção de conflitos, ou a sua resolução, está no centro da agenda do Secretariado-geral e do Conselho de Segurança. E que se consegue obter resultados.

As grandes fraturas atuais na cena internacional, da agressão russa contra a Ucrânia à tragédia de Gaza, sem esquecer muitas outras, como a guerra de Bashar al-Assad na Síria contra a sua própria população, dão origem a apreciações muito controversas da atuação de ambos, do Secretário-Geral e do Conselho de Segurança.

Mas o principal problema reside no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Este órgão é a autoridade suprema quando se trata de resolver os verdadeiros desafios à ordem internacional. O Conselho tem estado continuamente a perder a sua autoridade. A decisão de invadir o Iraque, tomada nos Açores em 2003 sem o envolvimento do Conselho de Segurança por George W. Bush, Tony Blair e José María Aznar, com José Manuel Durão Barroso como anfitrião, marca o início do declínio da função política da ONU. Foi, para muitos observadores, um dos maiores ataques à credibilidade do Conselho. Desde então, temos assistido a uma sucessão de factos semelhantes: a Líbia em 2011, a Síria imediatamente depois, a invasão da Crimeia em 2014, a questão palestiniana, que se agravou a partir de 2018, com um novo veto dos EUA a 1 de junho desse ano, bem como a aprovação de missões de paz onde não havia qualquer processo de paz ou acordo político aprovado e respeitado pelas partes em conflito. Estes são alguns exemplos da crescente perda de autoridade e da crescente irrelevância do Conselho de Segurança.

Mas o principal problema reside no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Este órgão é a autoridade suprema quando se trata de resolver os verdadeiros desafios à ordem internacional. O Conselho tem estado continuamente a perder a sua autoridade.

A questão essencial é a reforma do Conselho. Esse assunto tem estado na agenda desde o período das descolonizações. Ganhou alguma força depois do fim da Guerra Fria, na década de 90 e volta agora a ser um tema central, sobretudo com a preparação da Cimeira do Futuro (22-23/09/24), que faz parte do segmento de alto nível da Assembleia Geral deste ano.

A questão essencial é a reforma do Conselho. Esse assunto tem estado na agenda desde o período das descolonizações. Ganhou alguma força depois do fim da Guerra Fria, na década de 90 e volta agora a ser um tema central, sobretudo com a preparação da Cimeira do Futuro.

O futuro do multilateralismo, nas áreas políticas, do desenvolvimento e dos direitos humanos, depende dessa reforma. O Conselho tem de representar a realidade internacional de hoje e não a que existia em 1945. A África, a América Latina, a Ásia e outras economias de relevância indiscutível devem ter uma presença permanente e significativa no Conselho de Segurança. O Secretário-Geral e as organizações regionais têm a obrigação de tornar esta questão um ponto prioritário da agenda internacional. Como também é vital rever as regras sobre o uso do direito de veto. Insistir, voltar a insistir, mesmo sabendo que ambos os temas parecem insolúveis, tendo presente a oposição sistemática dos cinco países com assento permanente no Conselho e direito de veto.

Para resolver os desafios globais é preciso ganhar o combate pela reforma. O silêncio e aceitação de uma realidade ultrapassada levam apenas a divisões e confrontos de grande envergadura numa altura em que os desafios existentes e as suas tendências de evolução negativa pedem coordenação e cooperação entre todos os povos. Uma coordenação e uma cooperação urgentes, vitais.

 

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