23 set 2020 Fonte: NA Temas: Alterações climáticas e ambiente
Autor: Manuel Pacheco Coelho, ISEG/Universidade de Lisboa
Janeiro, 2015: Em New York, os delegados das Nações Unidas deram um passo histórico na gestão dos chamados “international commons” e na definição de um modelo de governança para o Alto Mar. Depois de tensas discussões, os representantes dos governos decidiram desenvolver um processo formal para a criação de um novo instrumento vinculativo para a gestão e conservação da biodiversidade nas áreas para lá das jurisdições nacionais. Este novo acordo (inicialmente o deadline para se chegar a um texto final apontava para 2018, depois adiado para 2020) iria integrar questões tão diversas como a exploração dos fundos marinhos e os recursos genéticos marítimos, as pescas, a investigação científica para a utilização dos recursos comuns e transferência de tecnologia para os países em desenvolvimento, etc. A decisão vinha no seguimento da Conferência de Kingston sobre o futuro da exploração dos minerais dos fundos marinhos e de uma petição apresentada pela Global Ocean Commission para um novo acordo sobre a proteção do Alto Mar, ambas em 2014.
A escolha que fazemos desta temática justifica-se por duas ordens de razões.
Uma primeira tem a ver com a importância (nem sempre devidamente reconhecida) dos Oceanos e do seu especial papel no desejado Desenvolvimento Sustentável. Os oceanos ocupam 70% da superfície da Terra e fornecem 99% do chamado “espaço vital” do planeta. São o maior ecossistema do “planeta azul”. Constituem uma importante fonte de atividade económica (pesca, navegação, construção naval, portos, produção offshore de petróleo e gás, turismo, etc.) e contribuem significativamente para o PIB mundial. Mais de 90% do comércio mundial é transportado por mar. Três biliões de pessoas dependem dos recursos marinhos e costeiros. Cerca de 44% da população mundial vive na faixa costeira até 150 km da costa; oito das 10 cidades mais populosas do mundo estão aí localizadas. Os oceanos contribuem amplamente para a segurança alimentar das populações; a pesca é uma importante fonte de proteínas. Os oceanos são centrais para o turismo marinho e costeiro e para as atividades “mare” recreativas e culturais. Constituem uma base importante para modos de vida únicos e têm um grande valor intrínseco, social e político. Em termos ambientais, são extremamente relevantes, pois são o principal regulador do clima global. Os oceanos são um grande sumidouro de dióxido de carbono e o fitoplâncton nos mares contribui com cerca de 50% do oxigénio do mundo.
Os oceanos são a maior fonte de biodiversidade do planeta. Estima-se que 50–80% de toda a vida na Terra se encontra sob a superfície dos oceanos. O domínio marítimo fornece uma rica biodiversidade de ecossistemas, hospeda 32 dos 34 phyla conhecidos na Terra e contém entre 500.000 a 10 milhões de espécies marinhas. Novas espécies oceânicas estão continuamente sendo descobertas, principalmente no fundo do mar. Os bens/produtos fornecidos pela biodiversidade marinha incluem alimentos (cerca de 100 milhões de toneladas por ano) e substâncias e ingredientes naturais para biotecnologia e produtos farmacêuticos. Os recursos genéticos têm um valor comercial significativo. Os serviços/funções incluem a produção e mineralização de matéria orgânica, o armazenamento de carbono, o armazenamento de poluentes e resíduos da terra, a proteção face às alterações climáticas e a proteção costeira. Nesta medida, a conservação da biodiversidade (definida como a variabilidade entre os organismos vivos, incluindo os ecossistemas terrestres, marinhos e os complexos ecológicos dos quais fazem parte) é extremamente importante. É certo que existem muitos fatores de stress na saúde dos oceanos, como pesca excessiva, poluição e impactos indesejados de origem antropogénica. Estima-se que até 13% das pescarias globais entraram em colapso devido à sobreexploração comercial dos stocks pesqueiros. As áreas costeiras estão ameaçadas. Estima-se que aproximadamente 30–35% dos habitats marinhos críticos como mangais e recifes de coral foram destruídos.
A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS, 1982) fornece um regime jurídico abrangente de governança e uso dos oceanos e seus recursos, mas tem limitações. As áreas dos oceanos para as quais a responsabilidade pela gestão está fora da jurisdição dos estados-nação incluem o “Alto Mar” e a “Área”. Aproximadamente 64% da superfície dos oceanos e 95% de seu volume estão nessas áreas[1], o que dá uma ideia do significado desta discussão.
A segunda ordem de razões tem a ver, precisamente, com a questão da cooperação.
Um acordo desta dimensão e complexidade não é seguramente fácil de analisar em curto espaço. Assumindo tratar-se de uma visão parcial (o acordo será necessariamente global e o resultado final representará o possível equilíbrio entre os temas e interesses em presença), concentremo-nos no caso das pescas.
Desde os trabalhos seminais de Gordon e Scott, na década de 50, a ideia central da moderna Economia das Pescas é a de que, em condições de livre acesso e concorrência, o mercado não conduz a soluções socialmente eficientes na utilização dos recursos. A natureza de “propriedade comum” das pescas e a presença de externalidades no processo de captura conduzem a soluções de equilíbrio de mercado que implicam a sobreexploração dos recursos e a sobrecapacidade do sector, nisto se traduzindo a sempre citada alegoria da “Tragédia dos Comuns”. Os direitos de propriedade (a sua ausência ou indefinição) estão, pois, no centro do problema da gestão das pescas; problema que se torna mais complexo quando as pescas são transzonais por natureza. Estas dificuldades foram potenciadas pela nova Lei do Mar (UNCLOS, 1982). A Parte V desta Convenção reúne as disposições/regras de jogo que enquadram o desenvolvimento das pescas e significou, no contexto mundial, uma alteração sensível na capacidade de gestão eficiente e sustentável dos recursos. A criação do Regime das 200 milhas, com direitos exclusivos para o estado costeiro sobre a pesca numa faixa de dimensão considerável (a designada Zona Económica Exclusiva), foi o seu traço mais distintivo e representou, para muitos observadores, uma autêntica “promessa de abundância”. A evolução geral no sentido de direitos exclusivos para o Estado costeiro não significou, contudo, a exclusão de formas de livre acesso nas pescas internacionais. A Lei do Mar não exclui o princípio da liberdade dos mares: o Alto-Mar, para lá dos limites das ZEEs, mantém um estatuto especial remanescente, onde o princípio do livre acesso ainda vigora.
Uma das questões mais penetrantes que emergiu como consequência da introdução das ZEEs é a que diz respeito à gestão de recursos partilhados. Dado que os peixes são dotados de mobilidade, era inevitável que os países costeiros, após o estabelecimento das ZEEs, verificassem que estavam partilhando alguns desses recursos com países vizinhos. Muitos países constataram, igualmente, que alguns dos stocks adquiridos passavam a fronteira da ZEE para o Alto-Mar, onde ficavam sujeitos à exploração dos países de pesca longínqua. Alguns desses stocks moviam-se a grandes distâncias, passando sucessivamente nas ZEEs de vários países e em zonas de Alto-Mar. Um dos assuntos que ficaram inconclusivos na Lei do Mar diz respeito a estes recursos.
O desenvolvimento de uma teoria para a gestão destes casos é ainda um “work in progress”, apesar de economistas e matemáticos procurarem, desde final dos anos 70, resposta para estas situações. A proposta analítica mais comum de aproximação a este problema tem sido a de tomar o modelo básico da Economia das Pescas e combiná-lo com a chamada Teoria dos Jogos. Há, assim, uma interessantíssima literatura que referimos como Gestão de Recursos Partilhados. A conclusão geral é a de que, nas situações de interação, em que o benefício líquido de um utilizador está dependente de outros, a não-cooperação conduz a resultados bastante inferiores aos que resultariam da existência de cooperação. Os autores predizem que a não-cooperação se traduz em resultados muito parecidos com os da pesca de um só país com livre acesso e não regulada, i.e., à dissipação total das rendas. Os utilizadores seriam assim conduzidos a uma espécie de “Dilema do Prisioneiro”, uma armadilha social que “empurra” ambos os jogadores para a “tragédia”. Daqui resulta que a cooperação é o elemento chave para uma gestão sustentável.
Os “unfinished business” da Lei do Mar isto é, a definição imprecisa de direitos de propriedade nas áreas de Alto Mar adjacentes às ZEEs, e as consequentes dificuldades na gestão dos stocks partilhados, acabariam por estar na origem de muitas discussões e “fish wars”, nos anos noventa. O Acordo das Nações Unidas, de 1995, sobre Gestão de Recursos Transzonais e Espécies Altamente Migradoras, pretendeu ultrapassar este problema e promover uma nova fórmula de cooperação entre estados interessados na gestão dos recursos. No contexto das negociações, emergiu um compromisso que mantém o livre acesso além das 200 milhas, mas garante às Organizações Regionais de Pesca (RFMOs) o poder de regulação nas áreas adjacentes às ZEEs. A maior novidade está na capacidade de aquelas Organizações poderem estender as suas regras quer aos países membros, quer a não-membros. Não se chegou a resolver o problema dos “novos entrantes” nestas organizações, às quais se confere o direito de estabelecer quotas de captura e controle do número de barcos em atuação para um dado stock e zona. Apesar de alguns melhoramentos, não se resolveu o problema da fiscalização. Cada país membro terá o direito de inspecionar o navio de qualquer outro país, contudo, a ação legal contra eventuais infrações deverá ser tomada pelo país de origem do navio encontrado em falta. Parece, assim, largamente circunscrito, o efeito potencial da fiscalização.
Note-se que, apesar de alguns resultados interessantes, este Acordo continua sendo motivo de discussão, especialmente no contexto da NAFO. Face aos fracos resultados obtidos na recuperação dos stocks de bacalhau, os líderes das organizações de pesca da Terra Nova têm proposto o alargamento da ZEE até ao limite das 350 milhas fazendo-a coincidir com os limites da Plataforma Continental.
Note-se igualmente que, enquanto os investigadores das pescas chamam a atenção para as suas limitações, no contexto das discussões sobre o novo instrumento de proteção da biodiversidade, a centralidade deste acordo de 95 é imensas vezes reafirmada, e a sua lógica de regulação, apontada como “inspiradora” para outros domínios da discussão.
Retomando então o ponto inicial: que passos fundamentais foram dados no sentido de chegar a um entendimento sobre proteção da biodiversidade para lá da jurisdição nacional?
Dada a presença de vários gaps legais e de implementação, as Nações Unidas constituíram, em 2004, um Grupo Ad-hoc de Trabalho sobre estas questões, que foi desenvolvendo trabalho em várias sessões e que promoveria a decisão de 2015 com que iniciámos este texto. Na quarta sessão, em 2011, acordou-se num “Package de temas” que incluía:
- Recursos Genéticos Marinhos (RGMs) e aspetos relacionados com o acesso e distribuição de benefícios.
- Instrumentos de gestão “area-based”, incluindo áreas marinhas protegidas.
- Avaliação de Impacto Ambiental, obrigatória.
- Capacitação para o desenvolvimento e transferência de tecnologia.
O tema dos recursos genéticos, por exemplo, é especialmente sugestivo e dá-nos algumas indicações sobre interesses em presença e alinhamentos de grupos de pressão.
Antecipando os benefícios financeiros que podem ser derivados dos RGMs, os países em desenvolvimento pediram que a biodiversidade nessas áreas também fosse declarada como "património comum da humanidade" e exigiu que o acesso a esses recursos e o mecanismo de repartição de benefícios se baseasse em princípios de equidade. Na verdade, apenas 10 países respondem, até agora, por 90% das patentes associadas a RGMs. Os países em desenvolvimento argumentaram, portanto, que o livre acesso a esses recursos, como o aplicável aos recursos vivos no alto mar, vai contra o princípio da "ordem económica internacional justa e equitativa". Esses argumentos são contestados pelos países desenvolvidos que mantêm que a exploração dos recursos genéticos marinhos se enquadra no direito à pesquisa, que faz parte do princípio da liberdade do Alto Mar. Estados como Japão, EUA e Canadá reafirmam o argumento de que a pesquisa é uma atividade científica onerosa e realizada por empresas privadas. Portanto, elas têm o primeiro e o único direito de obter os lucros de monopólio derivados do patenteamento e da comercialização da tecnologia. Até porque, quando a pesquisa for bem-sucedida, o bem-estar decorrente beneficiará a humanidade, refletindo-se no aumento do excedente do consumidor.
Do que podemos entrever, existem diferentes “grupos de pressão” neste debate:
O maior é o “Grupo dos 77” (principalmente países em desenvolvimento) e a China. São eles que defendem que o regime jurídico dos RGMs deve refletir o património comum da humanidade.
Os estados-membros da União Europeia (UE) estiveram entre os primeiros a defender a adoção de um instrumento juridicamente vinculativo e firmemente empenhados no sucesso das negociações. A UE defende que o acesso e a utilização dos recursos genéticos marinhos não sejam proibitivos, mas sim facilitadores e conducentes ao avanço da investigação e do desenvolvimento. Os europeus defendem que os organismos vivos não se enquadram na definição de recursos da Área e não fazem parte do património comum da humanidade; mas opõem-se a uma abordagem do tipo “primeiro a chegar, primeiro a ser servido” para a utilização da biodiversidade, alegando que isso prejudica a sustentabilidade. Por fim, a EU defende que o novo acordo deve fornecer uma base legal para a capacitação e transferência de tecnologia, incluindo a cooperação em pesquisa científica com países em desenvolvimento.
Chama-se a atenção para a chamada Aliança de Alto Mar, composta por 32 ONGs que representam a sociedade civil. Elas sugerem um regime sue generis para governar o acesso aos RGMs e repartição de benefícios e defendem que o novo instrumento deve codificar princípios normativos a serem adaptados ao meio marinho, como o princípio da precaução e da gestão baseada em ecossistemas.
O Canadá favorece o uso da melhor ciência disponível na tomada de decisões e a Noruega defende a visão de que o novo instrumento deve estabelecer um regime que mantenha o equilíbrio de interesses refletido na UNCLOS. Por seu lado, a Rússia defende que o património comum não se aplica aos recursos vivos e que não há base legal para expandir o mandato da ISA para tratar dos recursos genéticos marinhos.
O texto vai longo. Tão, ou mais, importante que o caso proposto e a sua análise (aqui, necessariamente, apenas introdutória) é a reflexão que ele sugere. Que outros ensinamentos podemos retirar no que à cooperação diz respeito (em especial, num contexto de transição, uma vez que estamos a chegar ao fim de um ciclo com a cessação do atual Conceito Estratégico da Cooperação Portuguesa)? Entre outros, há dois aspetos relevantes que sublinhamos. Por um lado, a importância imparável que, neste momento especial, assumem as questões ambientais e a problemática da pobreza e da justa distribuição dos benefícios do Desenvolvimento. Por outro, a convicção de que a situação atual promove uma cooperação mais desinibida, que valoriza as diferentes perspetivas/interesses dos jogadores num processo que obriga a reconhecer, desde o início, a vantagem da cooperação e a sua inevitabilidade. Portugal pode assim valorizar a sua presença na UE e as relações com os seus tradicionais parceiros por esse mundo fora, em especial os que fazem parte da CPLP, sem medo de perder identidade e sem velhos complexos colonialistas.
[1] Além do limite de 200 milhas das Zonas Económicas Exclusivas (ZEEs), encontramos o "Alto Mar", que é considerado uma parte dos bens comuns globais: todos os estados têm direitos iguais, incluindo liberdade de pesca e pesquisa científica. As áreas além dos limites da jurisdição nacional incluem: a coluna de água além da ZEE, ou além do mar territorial (12 milhas), onde nenhuma ZEE foi declarada, e o fundo do mar além dos limites da Plataforma Continental (a chamada Área).
As partes VII e XI da Convenção fornecem o quadro jurídico para o Alto Mar e a Área, respetivamente. Segundo o atual direito internacional, a pesca em alto mar está aberta a todos os países, e os minerais do fundo do mar são tidos como “património comum da humanidade” (conceito que ganhou destaque após discurso de Arvid Pardo, nas Nações Unidas). Os recursos do fundo do mar na Área são regulamentados e controlados pela Autoridade Internacional dos Fundos do Mar (ISA). Nenhum estado pode reivindicar ou exercer direitos soberanos sobre qualquer parte da Área ou seus recursos.