13 jun 2025 Fonte: CIDAC - Centro De Intervenção Para O Desenvolvimento Amílcar Cabral Temas: Ajuda Pública ao Desenvolvimento, Advocacia Social e Política, Segurança e Soberania Alimentar, Economia solidária / alternativa / Microcrédito, Consumo responsável / Comércio Justo, Financiamento para o Desenvolvimento

O que é o comércio internacional tem a ver com as nossas vidas e com o desenvolvimento? Não é só uma fase tresloucada do presidente dos Estados Unidos da América (EUA) e as suas taxas aduaneiras? Não é só a China a procurar controlar todos os mercados, para ultrapassar os EUA?
O comércio, em geral, e o internacional, em particular, fazem parte da longa história humana. Trocar o que temos por produtos que não temos, está na base de uma relação social e económica que se foi complexificando ao longo dessa história. O comércio representa uma parte significativa das relações entre pessoas, empresas e Estados. O regime que regula essas trocas tem-se pautado, em especial desde o pós-II Guerra Mundial, por uma orientação específica: a da liberalização. Adensou-se a ideia de que o crescimento e o mercado livre são duas peças-chave para o progresso e o desenvolvimento e de que quanto menos barreiras existirem ao comércio entre Estados e empresas, melhor será para todos/as. Isto porque se defende que, se cada país, empresa, pessoa se especializar e vender o que faz melhor e de forma mais eficiente, todos/as ganharão, pressupondo que estão todos/as numa situação de paridade.
No entanto, a história da humanidade não é uma história de igualdade nem de paridade. O colonialismo europeu, em particular, construiu um “norte” e um “sul”, em que o primeiro espoliou pessoas e recursos do segundo, estruturando relações de submissão, dependência e subalternidade. As sequelas dessas relações coloniais são de diversa índole. Do ponto de vista comercial e económico, elas corporizam-se em posições perenes, de um “norte” importador de matérias-primas e trabalho a baixo custo e exportador de produtos manufaturados (mais caros) e de um “sul” que é o oposto do norte. Nesta situação desigual, o comércio é tudo menos livre ou criador de desenvolvimento igual para todos e todas.
Para manter os países do “sul” como exportadores de matéria-prima barata e importadores de produtos manufaturados, os acordos de comércio livre têm assumido uma importância vital. Estes acordos são tratados internacionais entre dois ou mais países que reduzem ou eliminam barreiras comerciais, como as tarifas, para facilitar o comércio e o investimento entre eles. Envolvem, porém, outros elementos como a harmonização das regulamentações nacionais, em particular de proteção ambiental e laboral, nivelando-as, geralmente, por baixo. Os acordos, embora negociados entre Estados, privilegiam um ator que ganhou escala e poder com a globalização neoliberal: as empresas multinacionais. E deixam de fora a sociedade em geral, porque associações, organização não-governamentais e os e as cidadãs não são ouvidas nos processos de negociação.
Com estes acordos, as empresas podem processar os Estados e governos caso estes passem leis e regulamentações que prejudiquem a sua ação económica e produtiva, através de mecanismos de resolução de litígios entre investidores e Estados (ISDS). Estes mecanismos situam-se no âmbito da arbitragem, isto é, não são alvo das instâncias judiciais estatais, mas de tribunais privados.
O que é que isto tem a ver comigo, com Portugal? Portugal, enquanto Estado-membro da União Europeia, faz parte da uma vasta teia de acordos de comércio livre que cobrem quase o mundo todo. Atualmente, um dos acordos mais abrangentes em termos de população e territórios é o Acordo de associação entre a União Europeia e os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai). À semelhança de muitos outros acordos, com o Acordo UE-Mercosul um dos grandes prejudicados serão os/as pequenos/as agricultores/as e camponeses/as. Por um lado, porque à semelhança dos Estados, também pequenos agricultores e empresas de agricultura industrial não estão no mesmo patamar de poder e capacidade de produção e exportação. E, por outro, porque para poderem vender / exportar têm que se especializar nos produtos mais procurados (que podem ir da soja ao leite), alterando assim o tipo de agricultura – geralmente, de policultura – e pecuária que fazem, privilegiando a produção agrícola para exportar em vez de para alimentar as suas comunidades. Derivando, deste modo, em ciclos de pobreza e insegurança alimentar. A pobreza, a fome, são assim manifestações, entre outros fatores, de um sistema económico e comercial estrutural e historicamente injusto.
Com as independências dos países ex-colonizados, com o emergir do multilateralismo e de um sentimento pós-guerra que soprava no sentido da solidariedade internacional e da busca de alguma igualdade mundial, surgiram os mecanismos de ajuda ao desenvolvimento, no sentido norte-sul. Conscientes que esses mecanismos transvestiam, de algum modo, relações neocoloniais, os países do sul geopolítico uniram vozes gritando: comércio, não ajuda!
Estes mecanismos convivem com outros, como o do endividamento perene, os ajustamentos estruturais que manietam a implementação de políticas sociais nos países endividados, demonstrando as incoerências entre políticas de desenvolvimento e solidariedade internacional dos Estados do norte geopolítico e os acordos e as políticas comerciais que levam a cabo. Algo que tem paralelo também no campo ecológico: vimos os Estados-membro da UE assinarem o Acordo (climático) de Paris e assistimos, atualmente, a alguns deles - entre eles Portugal - a lutarem para que a nova política florestal europeia (EUDR) seja bloqueada, permitindo o agravar da desflorestação dentro e fora da UE.
Para além da monitorização das incoerências das políticas, movimentos sociais e organizações da sociedade civil em todo o mundo lutam por um comércio internacional mais justo. Uma delas, em Portugal, é a TROCA – Plataforma por um comércio internacional justo, com quem construímos o sexto número da revista Outras Economias. Outros exemplos são os movimentos camponeses, no Equador; o comércio justo, movimento internacional que procura, desde os anos 60, pôr em prática relações comerciais baseadas na justiça e no bem-estar para todos e todas; e tantas iniciativas sócio-económicas, em Portugal, a que se pode juntar. A nível da ONU, é importante também realçar o processo que procura regulamentar a ação das empresas multinacionais: o Tratado Vinculativo.
Enquanto andamos distraídos/as a comprar produtos fabricados por mão-de-obra quase escrava, o sistema económico internacional vai-se eternizando em relações económicas exploradoras dos seres humanos e do Planeta. Mas todos/as podemos fazer algo, em conjunto, para mudá-lo!