02 jul 2021 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Presidência da UE
Esta entrevista foi originalmente publicada na 22ª Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD "Relações União Europeia- África: Que Futuro?". Leia ou faça download da edição completa da revista aqui.
Bernardo Ivo Cruz é Conselheiro na Representação Permanente de Portugal junto da União Europeia e Delegado ao Grupo de Trabalho África do Serviço de Ação Externa da EU
Entrevista Realizada por: Luís Matos Martins, membro da direção da Plataforma Portuguesa das ONGD
A consolidação da parceria UE-África e a preparação da VI Cimeira UE-União Africana foram prioridades da Presidência Portuguesa. Apesar de a Cimeira ainda não ter data marcada, estes foram meses importantes para fazer avançar este processo. O que é que fica da Presidência Portuguesa neste domínio e o que é que foi possível alcançar durante estes últimos meses que poderá ser importante para o futuro das relações UE-África?
A relação entre a União Europeia e a União Africana é, de todas as relações que a União Europeia tem com o mundo, a mais intensa. A União Europeia é sempre, ou quase sempre, o maior parceiro da África. A Cimeira, que já devia ter acontecido, foi sendo adiada porque os Chefes de Estado, de Governo e as instituições da União Europeia e da União Africana entenderam que a Cimeira é importante demais para ser reduzida a um conjunto de declarações por via digital. E, portanto, fomos adiando a Cimeira, até ser possível nós termos na mesma sala os Chefes de Estado e de Governo e os Presidentes das instituições da União Europeia e da União Africana. Porque nós queremos que a Cimeira seja, de facto, uma Cimeira de negociação, de contactos, de progresso, na agenda partilhada entre a União Europeia e a União Africana. Da Presidência Portuguesa fica essa frustração, porque queríamos fazer a Cimeira durante a nossa Presidência e a pandemia não o permitiu, mas fica também um grande trabalho preparatório na transformação do relacionamento entre Europa e África que tem a ver com a passagem de uma relação de doador e recetor para uma relação de parcerias, de verdadeiros parceiros entre a África e a Europa.
Esta ideia de estabelecer uma parceria UE-África equilibrada entre as partes que vá além da relação tradicional “doador/recetor”, tem vindo a ganhar relevância no debate sobre o futuro das relações com o continente africano. Como considera que se pode efetivar esta intenção?
De facto o mais importante da relação entre a Europa e África é passarmos de uma ideia de que a Europa doa e que África recebe para uma verdadeira relação de parceria entre iguais entre os dois continentes. E isso reflete-se a todos os níveis: reflete-se por exemplo ao nível do comércio, mas também se reflete ao nível da lógica do funcionamento do apoio ao desenvolvimento, na qual a Europa se mantém muito empenhada – nós somos os maiores contribuintes para o desenvolvimento de África, numa lógica de doação e não numa lógica de empréstimo. Mas essa lógica não é a Europa dizer à África o que é que tem de acontecer: é uma lógica de um relacionamento muito mais transacional, muito mais de identificarmos os objetivos e os processos em conjunto. Estamos a falar num relacionamento que se baseia em objetivos comuns que estão estabelecidos e reconhecidos por ambas as partes nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas. Queremos, ao mesmo tempo, conseguir o crescimento económico, desenvolvimento social, sustentabilidade ambiental, modelos de boa governança ou de boa governação, e novos mecanismos de financiamento do desenvolvimento, em que trazemos para a mesa da conversa o sector privado juntamente com os atores tradicionais do desenvolvimento sustentável, como são as ONGD, como são os Estados, como são as fundações, etc. E, portanto, há aqui um conjunto muito grande de atores que nós queremos que trabalhem em conjunto, com objetivos comuns.
Um dos eventos que marcou a PPUE foi o Fórum de Alto Nível UE-África para o Investimento Verde, que refletiu a prioridade do investimento e da corresponsabilização do setor privado para o financiamento de projetos que contribuam para o desenvolvimento sustentável. Como considera que o trabalho desenvolvido pela PPUE neste domínio, pode contribuir para a prossecução de uma parceria mais equilibrada e capaz de promover o desenvolvimento sustentável?
Dentro daqueles cinco pilares do desenvolvimento sustentável – o crescimento económico, o desenvolvimento social, a sustentabilidade ambiental, a boa governança e os mecanismos de financiamento do desenvolvimento –, o sector privado tem um papel importante a desempenhar na lógica do desenvolvimento a longo prazo. É importante reconhecermos que o sector privado tem uma lógica diferente das ONGD, por exemplo – as empresas só sobrevivem quando ganham dinheiro, e, portanto, o sector privado investe para ter retorno. E vamos já aqui assumir uma coisa de princípio: falo em empresas que tenham responsabilidade social e ambiental, e não de investimento selvagem ou sem preocupações sociais ou ambientais. Mas as empresas, quando fazem um investimento num país em desenvolvimento, no caso estamos a falar de África, estão a investir para ter retorno, mas estão ao mesmo tempo a criar empregos, empregos locais. Um emprego bem estruturado e com um salário decente permite um desenvolvimento social imediato. Por outro lado, o investimento privado permite aos Estados cobrarem impostos, através dos quais os Estados têm capacidade de depois fazerem as políticas públicas que o sector privado não faz: saúde, educação, infraestruturas, etc. No entanto, para o sector privado investir em países em vias de desenvolvimento, e investir de forma sustentável, é preciso também que estejam criadas as condições para que o sector privado possa arriscar. Parte dessas condições encontramo-las na boa governação (educação, Estado de Direito, etc), outra parte nos mecanismos de financiamento do investimento. É preciso que os mecanismos de financiamento tenham em consideração, nomeadamente a banca, mas não só, que o risco que o sector privado assume no investimento para o desenvolvimento é diferente do que quando está a investir em países da OCDE. O Fórum de Investimento que a Presidência Portuguesa organizou foi um programa que durou meses, que pôs em conjunto os Estados, a União Europeia e União Africana, as organizações locais em África e o setor privado, para terem uma conversa estruturada sobre o que é que é preciso, qual é a expectativa dos Estados e das Organizações da Sociedade Civil em relação ao desenvolvimento em África e qual é o papel de cada um. Este diálogo estruturado que Portugal montou durante a sua Presidência permitiu que todos nos entendêssemos à volta de um objetivo comum e que faça com que o diálogo daqui para a frente agora seja muito mais frutuoso. Portanto foi este o grande contributo de Portugal para esta agenda integrada de desenvolvimento, foi permitir que toda a gente conversasse.
Entendemos que a concretização de uma parceria genuína e equilibrada depende inevitavelmente da disponibilidade para promover o diálogo e para reforçar mecanismos inclusivos de participação dos cidadãos e da sociedade civil dos dois continentes. Qual lhe parece ser o nível de abertura no Conselho para fazer avançar esta questão, e como lhe parece que a sociedade civil pode ser mais envolvida nestes processos?
É muito interessante de se ver a tensão criativa entre os Estados-Membros no Conselho. Há Estados-Membros que gostariam de andar mais depressa na Agenda do Desenvolvimento, e há outros que são mais prudentes, dizendo " estamos a fazer isto em parceria, e, portanto, não vale a pena estar a querer andar depressa demais do que aquilo que os nossos parceiros são capazes de absorver". Esta tensão criativa repete-se na relação entre a União Europeia e a União Africana em todas as suas dimensões. Repete-se também no relacionamento entre as Organizações da Sociedade Civil, entre organizações do sector privado, entre os Estados e entre as organizações internacionais. Agora, todos nós sabemos que só vamos conseguir construir esta parceria para o desenvolvimento sustentável quando estivermos todos a trabalhar nas mesmas ideias. Por exemplo, sabemos que o impacto da atividade económica europeia no ambiente é maior do que a dos países africanos, mas também sabemos que África precisa de se desenvolver economicamente. Temos sempre de encontrar um equilibro. Não é uma conversa simples, porque há muitas variáveis que têm de ser postas neste diálogo. Mas nós vemos que há cada vez mais um encontro de um entendimento de aquilo que deve ser o crescimento económico, o desenvolvimento social, a sustentabilidade ambiental, os elementos de boa governança e os mecanismos de financiamento. Há cada vez mais um entendimento conjunto e comum entre a África e a Europa.
Esta entrevista foi originalmente publicada na 22ª Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD "Relações União Europeia- África: Que Futuro?". Leia ou faça download da edição completa da revista aqui.