11 dez 2021 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Educação e Formação, Igualdade de Género, Sociedade Civil
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de dezembro de 2021 "Igualdade de Género e Desenvolvimento" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.
Laila Dava fez parte do Programa CHANGE da Girl Move Academy. É Gestora do Mwarusi Inmotion.
Entrevista Realizada por: Rita Leote, Diretora executiva da Plataforma
Na sua opinião, qual é o ponto de situação e quais são os grandes desafios que se colocam relativamente à igualdade de género em Moçambique?
A situação da igualdade de género mudou muito. Não está do jeito como nós desejávamos que estivesse, mas não está como estava antes, onde nós tínhamos raparigas e mulheres sem acesso à escola. Hoje temos um equilíbrio em termos de números nas escolas, apesar de ainda haver vários desafios. A situação está a caminhar lentamente. Estamos a ter leis a ser aprovadas que favorecem muito as mulheres, estamos a ter mulheres a serem formadas, o que permite com que comecemos a ver a sua contribuição para o desenvolvimento do país. O que vem impedir, se calhar, que o passo seja mais rápido, são algumas questões socioculturais que variam de província para província. Eu sou do Sul e agora encontro-me no norte do país, e a realidade é outra. Lá, a nossa sociedade é patrilinear, e aqui é matrilinear, mas tem certas práticas que discriminam a mulher nos dois sítios. No Sul, nós temos o lobolo, que é um casamento tradicional, em que se educa a mulher para a submissão no casamento, e aqui nós temos os ritos de iniciação que legitimam as raparigas como mulheres que já podem casar. Esta questão espoleta as uniões prematuras e as gravidezes prematuras, coisas contra as quais nós temos lutado cá, em Nampula, e em todo o país. Se formos olhar para os indicadores, encontramos esses desafios como uma grande barreira para que as mulheres continuem na escola, para que elas tenham poder de decidir, para que elas estejam num cargo relevante, seja no setor público ou privado, e tenham a mesma tabela salarial que os homens.
A Laila falou de várias dimensões importantes ligadas à igualdade de género. Pensando nas políticas públicas em Moçambique quais acha que são as que têm mais ajudado a promover a igualdade de género e o que acha que é necessário para chegar mais longe?
O Governo afirma que uma das prioridades é a igualdade de género, têm parcerias com várias instituições e organizações da sociedade civil, e têm desenvolvido vários instrumentos legais. Em termos de lei, posso dizer que o nosso país está muito bem. Há anos atrás nós tínhamos no nosso Código Penal um artigo que feria os direitos humanos - especificamente aqueles que tocavam as mulheres -, porque no artigo vinha que se uma menina é violada e o violador mostrar interesse em casar com ela, ele ficava isento da pena, desde que a família aceitasse e a menina casasse. Tinha também artigos que permitiam que meninas com 16 anos se casassem com o consentimento dos pais. Devido à Lei da Liberdade da Expressão, que nos favorece sair à rua e expor as nossas inquietações, a sociedade civil conseguiu reverter essa situação, tendo sido trocado esse artigo no Código Penal, tirando por completo uniões prematuros, mesmo com a aceitação dos pais. E para reforçar, em 2019, a 22 de outubro, celebrámos a Lei Contra as Uniões Prematuras, que dá uma base de como intervir em caso de uniões prematuras. Tem leis contra a violência praticada contra a mulher, temos organizações que trabalham no sentido de garantir que mulheres vítimas de violência são assistidas e estão em segurança. Temos muitas leis, na verdade, muitas leis que apenas precisamos colocar a funcionar. Falta uma base de comunicação e mais vontade para fazer acontecer.
A nível da sociedade moçambicana, acha que a sociedade acompanha esse ritmo e essa perspetiva a nível governamental, ou ao nível da sensibilização das pessoas ainda há mais a fazer?
Eu acredito que ainda há muito a fazer, porque as pessoas que estão a acompanhar essas mudanças, que têm esse conhecimento, geralmente são pessoas que estão conectadas a uma organização ou ao governo. A sociedade no geral, desde aquela mulher do campo a todas as mulheres que vivem em áreas urbanas que não estejam conectadas a uma organização, não conhecem estes instrumentos, não estão a acompanhar estes processos, e por vezes acaba a não funcionar se elas não apresentam queixa. Nós que estamos cá deste lado temos desenvolvido programas para garantir que essa informação chega, mas não tem sido suficiente.
Na sua opinião, qual é que acha que é o papel de trabalhar na capacitação e na promoção do empoderamento de mulheres e raparigas para o desenvolvimento sustentável em Moçambique?
Na minha opinião é importante trabalhar esses dois processos, a capacitação e o empoderamento, porque a capacitação vem trazer a questão da melhoria das minhas habilidades, vem despertar mais o meu potencial; e o empoderamento vem-me ensinar a ser mais firme, a ter as minhas próprias decisões, e a exercer influência sobre aquilo que eu quero transformar. Se nós temos mulheres capacitadas e empoderadas, nós vamos ter mais colaboração, mais mão-de-obra no terreno de qualidade, mais opiniões que podem vir a transformar a nossa sociedade. Mulheres educadas, mulheres empoderadas podem, sim, transformar o mundo. Não vêm trazer a desigualdade, como muitos homens acham. Quando nós temos mulheres formadas -- porque elas acabam a ser aquelas que cuidam da família, aquelas que cuidam da educação dos filhos – elas vão educar os seus filhos de forma a que cresçam firmes, de forma a que tenham opiniões e conhecimentos do que está a acontecer no mundo atual, e estejam certos do que querem ser e fazer no futuro.
Considerando tudo o que disse e a relevância desta força que as mulheres e as raparigas podem ter, como é que sente que tem sido a intervenção da Girl Move neste contexto?
Eu acho que a intervenção da Girl Move tem sido de grande ajuda. Eu olho, primeiro, como Girl Mover alumni que fez parte da formação oferecida pela Girl Move, e também como parte da equipa, agora estando desde lado e passando esta informação para as outras meninas. A Girl Move tem quebrado ciclos de pobreza cá em Moçambique, ajudando a garantir que há mais desenvolvimento no país . A Girl Move traz empoderamento, é essa a questão. Nós trazemos a nossa habilidade, e ela vem a despertar essa força em nós, essa firmeza em nós, clareza em nossos passos, de onde nós queremos ir, o que nós queremos ser, onde é que nós queremos impactar e como é que nós podemos fazê-lo. E, ao mesmo tempo, há a metodologia que a Girl Move traz, essa metodologia inovadora de mentoria em cascata que permite com que nós vejamos diferentes manas como modelos de referência. Essa questão de uma mwarusi, uma menina da sétima classe, ter uma mana mentora que já está na universidade como modelo de referência, e esta mana da universidade ver a mana do Change, que é a mana já licenciada, como modelo de referência, veio fortificar isso. Porque essa menina da sétima classe pode, nalgum momento, se sentir tentada a desistir, mas quando tem esse modelo de referência que é a mana mentora, que também conta a sua trajetória de como conseguiu caminhar mesmo em maior dificuldade, e ao mesmo tempo ver a experiência da mana Girl Mover que pensou desistir, mas conseguiu caminhar e chegar à licenciatura, e ter uma formação de impacto e sair daqui, ter um emprego que deseja ou criar a sua companhia, então essa menina começa a avaliar as coisas. "OK, o que é mais sustentável para mim? É entrar num casamento agora, construir uma família, ou é continuar a estudar e garantir que os meus sonhos são realizados e não só, garantir que eu inspiro outras meninas?" A Girl Move tem trazido isso, e são várias coisas que nós podemos ver. Por exemplo, quando nós chegámos aqui, os níveis de uniões prematuras eram muito altos em Nampula. Como nós trabalhamos em várias escolas aqui na cidade de Nampula, conseguimos manter muitas meninas na escola. Com as formações, com essas capacitações que a equipa do Believe tem levado ao campo e trabalhado em parceria com as escolas, conseguimos formar as meninas em relação a habilidades para a vida e despertar esse potencial nelas. Mantemo-las na escola, mas com mais foco para o futuro delas. Temos os números de gravidezes precoces a baixarem, os números de uniões prematuras a baixarem, tudo isso graças à capacitação e ao empoderamento. Temos mulheres universitárias a concluírem a faculdade. E no programa de licenciadas, ganhamos clareza do que queremos fazer realmente, aprendemos como é que podemos desenvolver o nosso projeto, ou adquirir ferramentas que nos conectem ao emprego que nós queremos ter.
O impacto que sentiu na sua vida, foi semelhante a esse que estava a explicar agora?
Sim. Eu sou bailarina, e quando cheguei aqui já tinha um sonho de criar uma escola de dança focada para o desenvolvimento humano e o despertar do potencial de adolescentes e jovens de comunidades vulneráveis. Eu já fazia isso de forma improvisada, mas quando cheguei aqui tive ferramentas que me fizeram ver como é que eu posso organizar a minha escola, e ao mesmo tempo tive a oportunidade de entrar na equipa, que me permitiu começar a trabalhar diretamente com o meu grupo-alvo, que é as mwarusi. Agora eu desenho sessões de dança com o foco para expressão delas. São sessões com o intuito comunicar e ao mesmo tempo de ensinar as meninas que a cultura delas fala, e que pode falar de um modo que as leve a um caminho negativo, mas também pode falar de um modo que as leve a um caminho positivo – e então como é que nós, juntas, a equipa e elas, podemos usar essa cultura para transmitir mensagens que venham despertar os sonhos de outras meninas? É mais ou menos isso. Eu sinto que estou a fazer o que eu queria fazer.
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de dezembro de 2021 "Igualdade de Género e Desenvolvimento" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.