11 dez 2023 Fonte: REVISTA DA PLATAFORMA PORTUGUESA DAS ONGD Temas: Economia solidária / alternativa / Microcrédito
Rogério Roque Amaro, Professor Associado Jubilado do ISCTE-IUL
Entrevista realizada por Carlota Bicho, Responsável de Comunicação e Rita Leote, Diretora Executiva da Plataforma Portuguesa das ONGD
Esta entrevista foi originalmente publicada na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de novembro de 2023 "Economia, pessoas e planeta: que alternativas para o bem-estar" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.
Muitos consideram que a economia social e solidária é uma resposta a muitos dos desafios que enfrentamos enquanto humanidade – da pobreza e das desigualdades às alterações climáticas. De que forma é que vê o papel da economia social e solidária neste sentido? Poderá esta constituir-se como uma alternativa viável e sustentável?
Sim, considero que é uma alternativa viável e sustentável, se forem cumpridas todas as características, princípios e valores que lhe estão associados. Mas há também que separar o que é a economia social do que é a economia solidária, porque embora uma venha na sequência da outra, não são exatamente a mesma coisa.
A economia social surgiu no séc. XIX, e já na altura procurava ser uma alternativa viável para os problemas que o capitalismo tinha criado, nomeadamente o facto de a economia de mercado ser um modelo economicista, que não tinha em conta os problemas sociais e estava até a provocá-los a vários níveis. Além disso, a economia social procurava também uma alternativa no âmbito da convivência democrática, pois a economia dominante não tinha interiorizado a democracia nas suas formas de organização – as empresas eram tudo menos democráticas.
Infelizmente, a economia social foi-se acomodando e foi-se tornando mais um complemento do que uma alternativa. E essa é uma das razões por que surgiu a economia solidária, a partir dos anos 80 do século XX: porque a economia social já estava longe daquilo que eram os seus princípios originais, e em aspetos cruciais, como o sentido democrático das organizações. A democracia deixou de ser um valor a ter em conta e a promover por organizações da economia social, e a economia solidária quis retomar esse caminho da democracia e até alargá-lo ao espaço público envolvente. Por outro lado, a economia solidária surgiu também porque a economia social tinha derrapado o seu sentimento de solidariedade para o assistencialismo e, portanto, deixando de considerar aquilo que estava na origem das primeiras cooperativas e mutualidades operárias, que era a emancipação dos seus membros.
Mas é importante também dizer que a economia solidária também surgiu porque, no final do século XX, há desafios que não existiam no século XIX, nomeadamente a questão ambiental, ou os novos contornos da questão social (como a questão dos migrantes, as novas formas de pobreza e exclusão social), as relações interculturais, a questão da sociedade de informação, (que tende a ser uma sociedade pouco crítica e de pouco conhecimento), e a questão política (na economia social, estávamos na origem da democracia, atualmente assistimos ao desgaste e corrosão do sistema democrático, quer pelo poder económico, quer pela própria descrença na democracia, quer pelos fenómenos de extrema-direita, por exemplo). E, portanto, estamos aqui perante um conjunto de desafios, aos quais a economia social já não consegue responder.
E porquê a expressão solidária? Bom, por um lado, é uma substituição das áreas disciplinares - social, político, ambiental, etc. - por um conceito que deixa de ser sobre a delimitação da área de conhecimento, e passa a ser sobre o valor de referência. Mas há uma outra razão, que é o facto deste conceito e destas práticas de economia solidária (ao contrário do que aconteceu com a ideia de economia social que nasceu na Europa e depois foi levada para outros continentes), nascerem em simultâneo em mais do que um continente. A economia solidária tem pelo menos três expressões originais, do ponto de vista da sua afirmação explícita e sistematizada, em três zonas: América Latina, Europa e Canadá francês (Quebeque). Há até uma certa anterioridade da América Latina em relação ao conceito, o que tem a ver com outra coisa muito interessante que a economia solidária traz, que é a valorização das dinâmicas informais, comunitárias e populares de solidariedade e de entreajuda.
Mas há que referir ainda que a economia solidária surgiu também mais ou menos na mesma altura, e sem influência das outras zonas, num outro contexto muito específico: a Macaronésia. Bom, mas então porque é que a economia solidária é, neste momento, a via mais interessante do ponto de vista económico para fazer face a situações que estamos a viver?
Porque, ao contrário da economia dominante, a economia de mercado, não deixa de fora as partes sociais, ambientais, etc. A economia solidária é um projeto económico, mas é também um projeto social, um projeto ambiental, um projeto cultural, um projeto territorial, um projeto de conhecimento, um projeto político de democracia, um projeto de gestão alternativa, e um projeto ético. Na sua versão mais completa, a economia solidária tem estas nove componentes, e por isso é uma economia mais substantiva, mais integrada, mais multidimensional.
E, portanto, é uma economia que procura ser e estar em interação com o ambiente, com a cultura, com o território, com a democracia, etc., e é a que está mais preparada, do ponto de vista das suas potencialidades, para responder àquilo que são os grandes problemas atuais.
Ao longo do seu percurso nesta área, deu especial atenção à região da Macaronésia. Em que é que é esta região é distintiva no cômputo geral da economia social e solidária?
Neste caso, na economia solidária. Na economia social não é distintiva. Eu tive a sorte e privilégio de estar a acompanhar o início da economia solidária nos Açores, que foi, o primeiro local em Portugal onde se começou a falar de economia solidária, a partir do final dos anos 80.
A primeira iniciativa constitui-se formalmente em 1995, com exatamente o nome da economia solidária. A história da economia solidária na Macaronésia tem a ver com os problemas que existiam do ponto de vista social, com a falta de respostas do ponto de vista do Estado, com falta de sensibilidade do ponto de vista das empresas, para a integração de pessoas em situação de pobreza e exclusão social. Daí ter surgido a necessidade de criar organizações novas para acolher as pessoas. Quando se tentou encontrar uma designação para esta economia que estava a ser criada, os protagonistas que o estavam a fazer chegaram à conclusão que a expressão “economia social” não servia, porque já estava desatualizada, e entendeu-se que a melhor expressão devia ser economia da solidariedade e, portanto, surgiu o nome de economia solidária, desconhecendo nessa altura que já existia o conceito.
A parte social era o ponto de partida, mas rapidamente galgou para as áreas ambientais, para a luta pela biodiversidade ou para as questões da cultura, da recuperação de culturas antigas, importantes para um país que tem forte emigração....
A definição da economia solidária na Macaronésia foi a mais completa nesta fase, porque normalmente as outras definições da América Latina e da Europa não tinham tantas dimensões. Uma coisa que nas outras definições não existia, é a passagem para uma visão ecocêntrica da solidariedade, e não meramente antropocêntrica. Isto durante muito tempo era distintivo dos Açores, e depois passou para a Macaronésia, porque havia interesse em haver projetos comuns no âmbito da União Europeia com as outras 2 regiões insulares de Portugal e de Espanha, portanto, Canárias e Madeira, mas também incluindo Cabo Verde.
Estas quatro regiões têm em comum algumas características muito interessantes. Primeiro estão as quatro no meio do Oceano Atlântico. Portanto, são regiões insulares e têm problemas e ameaças comuns, como o problema das alterações climáticas e do desaparecimento de algumas zonas com a subida do nível dos mares, como estarem muito sujeitas a fenómenos como sismos e vulcões. Têm uma relação de forte proximidade com a natureza, no bom e no mau sentido. Ou seja, na iminência das catástrofes, mas também numa relação de interdependência e não de domínio sobre a natureza. Por isso nasceu a ideia de uma visão ecocêntrica, de uma relação de interdependência com a natureza, numa visão de economia solidária muito sentida e vivida com a natureza.
Depois, a Macaronésia está no meio de três continentes, e tem relações de formas diferentes com a Europa, a África e a América, e até os seus fluxos migratórios têm essas características. São zonas que estão em profunda interação e mobilidade com os três continentes. Isso dá-lhes uma transculturalidade e, portanto, uma perceção também da importância das culturas e da sua diversidade. Portanto, a dimensão cultural da economia solidária é uma dimensão transcultural, de grande diálogo, com os outros continentes e outras culturas.
A questão territorial é uma questão diferente das outras, porque é uma questão sem contiguidade, porque são ilhas.
Portanto, esses quatro níveis, ou seja, nível ambiental, social, cultural e territorial, para além de serem economias limitadas pelo facto de serem economias de ilhas, o que faz com que a economia solidária tenha aqui características muito diferentes das outras formas de economia solidária da América do Sul e da Europa e do Canadá. Acresce ainda uma outra coisa muito interessante, e daí a importância de termos Cabo Verde. Cabo Verde tem um princípio cultural que era omnipresente, traduzido pela expressão No Djunta Mon, que significa juntar as mãos, ajudar, trabalhar em conjunto, sempre que há qualquer obra ou ação, e isso é o princípio espontâneo, tradicional, da economia solidária.
Portanto, a Macaronésia foi onde eu senti e vivi mais intensamente o que é que é a economia solidária...
Considerando que Cabo verde é um dos arquipélagos da região da Macaronésia e país parceiro prioritário da Cooperação Portuguesa, como descreveria a realidade da economia social e solidária em Cabo Verde e o seu papel no desenvolvimento do país?
É muito interessante essa questão, porque Cabo Verde e os Açores foram claramente as duas zonas que melhor perceberam, sentiram e viveram o conceito e as práticas de economia solidária. São as duas zonas onde o conceito teve mais impacto e mais resultados. Cabo Verde já tinha uma história de economia social tradicional com algum significado, assimilou melhor o que era a economia social e tinha experiências interessantes, sobretudo ligadas à agricultura e nas zonas rurais. A economia solidária teve bastante recetividade desde logo por parte de algumas organizações, como por exemplo a Citi Habitat, o Atelier Mar e outras menos conhecidas, e sobretudo a Plataforma das ONG (de Cabo Verde). Estas tiveram uma grande adesão ao conceito de economia solidária e às práticas, porque sentiram que tinha a ver com Cabo Verde, tinha a ver com a cultura e as questões, os desafios do país.
Mas há outra coisa muito interessante: o ter passado por alguns governantes a ideia da importância da Economia Solidária. Alguns governantes chegaram a ter no seu discurso esta ideia de que a Economia Social e a Economia Solidária eram pistas importantes e caminhos para responder quer aos problemas da pobreza e da exclusão social, quer aos problemas ambientais, quer aos problemas da cultura, quer aos problemas em geral do desenvolvimento. Tiveram essa perceção que assumiram e afirmaram. Ou seja, em Cabo Verde a ideia da Economia Solidária desempenhou um papel nas preocupações da governação e nas preocupações da ação das ONG e da própria Plataforma. Algumas autarquias também assumiam a Economia Solidária, quer em Santiago, quer na Ilha do Maio, e alguns projetos tinham a Economia Solidária como referência, em alguns casos ajudadas por ONG Portuguesas como o caso do Instituto Marquês de Valle Flor. Creio que em Cabo Verde está muito presente esta ideia da Economia Solidária, como guia para a ação das organizações e como guia de referência para a governação.
Qual é a relação entre a economia social solidária e as dinâmicas comunitárias nos territórios? Ou seja, de que forma é que a economia social e solidária contribui ou depende das culturas de participação cívica ou política?
A Economia Solidária alarga a dimensão política e democrática para o espaço envolvente, portanto para o espaço comunitário, para o espaço público. É não só produtora de democracia no seu interior, como é promotora no espaço envolvente, na comunidade. Um dos outros pilares é a questão da relação com o território, não só deste ponto de vista democrático, mas do ponto de vista da relação com o desenvolvimento comunitário ou desenvolvimento local do seu território, no sentido de privilegiar a utilização de recursos do território, mas também de promover, com a sua atividade, o desenvolvimento dos territórios onde está envolvida.
Das iniciativas de Economia Solidária mais desenvolvidas, destaco como exemplo a Catalunha, onde reside a rede de economia solidária mais interessante, mais ampla e mais desenvolvida da Europa, que organiza todos os anos a Feira Catalã de Economia Solidária, onde é impressionante ver a variedade de inúmeras experiências de Economia Solidária que existem e que cobrem tudo o que possamos imaginar, do nascimento até à morte das pessoas, dentro dos princípios da Economia Solidária, de creches, escolas, ateliers de arquitetura, livrarias, edição de livros, advogados... E todo o processo durante a Feira, ilustra de forma evidente (imaculada), a democracia e a relação com o território. Neste momento, introduzem como um dos elementos um novo conceito de “comunalidade”, que é no sentido da relação com os comuns ser um dos produtos da Economia Solidária. Não produz só bens e serviços, produz também sentido de comunidade, a "comunalidade”, sentido do comum.
Na América Latina verificamos que essa relação com as comunidades locais é também muito intensa. Nas favelas por exemplo, durante a Covid-19, o que valeu àquelas pessoas foram as atividades de entreajuda, do ponto de vista da alimentação, dos serviços, que eram autênticas atividades de Economia Solidária informal que muitas associações locais promoviam. Portanto a Economia Solidária é cúmplice em absoluto do desenvolvimento comunitário e vice-versa.
Outro exemplo muito interessante é o da África da parte continental. ... é muito interessante ver que existe uma prática de economia de solidariedade, que não está trabalhada ao nível académico e ao nível da sistematização da informação, mas que está lá no terreno, nas práticas, está em experiências comunitárias, populares e informais e onde a relação com a tabanca, a comunidade local, é muito forte. Por isso, África tem uma riqueza imensa, porque é um valor cultural em si, este princípio da ajuda mútua, da solidariedade no desenvolvimento de atividades económicas de sobrevivência e entreajuda.
Na Macaronésia, olhando para os Açores e para Cabo verde, também verificamos isso, acentuado pelo facto de serem regiões insulares, onde as comunidades estão elas próprias isoladas e onde o sentimento de proximidade e de entreajuda se tornou quase como elemento de sobrevivência, e por isso as relações das atividades da Economia Solidária com o seu território são muito fortes. Em Portugal Continental existe um novo conceito das Cooperativas Integrais, que são cooperativas multiserviços, que integram os vários serviços e têm uma forte relação com o território e com as suas comunidades.