14 nov 2024 Fonte: Ana Luísa Silva, Carla Paiva, Ines Pousadela Temas: Sociedade Civil
Este artigo foi originalmente publicado na Edição nº 27 (novembro de 2024) da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD: "Um Mundo em Mudança: que espaço para a Cooperação?". Leia ou faça download da Revista aqui.
Por Ana Luísa Silva, investigadora no CEsA/ISEG, Carla Paiva, Presidente da Plataforma Portuguesa das ONGD e Ines Pousadela, Especialista Sénior de Investigação na CIVICUS
Mais do que um artigo, este espaço é o resultado de uma conversa entre Ana Luísa Silva, investigadora no CEsA/ISEG, Carla Paiva, Presidente da Plataforma Portuguesa das ONGD, e Ines Pousadela, Especialista Sénior de Investigação na CIVICUS. Face a todas as mudanças em curso, a reflexão sobre o papel que a Sociedade Civil desempenha é cada vez mais importante.
Num mundo em profunda transformação, com desafios globais para os quais importa encontrar soluções, a Sociedade Civil tem procurado contribuir para os debates em curso em contextos cada vez mais hostis. Este é uma das questões abordadas pelas autoras, que centraram a sua conversa em aspetos como a importância de distinguir entre setores distintos da Sociedade Civil, bem como na necessidade de resistir às imposições colocadas à sua livre atuação.
Carla Paiva (CP): Assistimos à imposição de cada vez mais restrições à atuação da Sociedade Civil um pouco por todo o mundo. Tendo em conta as barreiras que se vão impondo ao espaço cívico e olhando para todos os desafios que enfrentamos atualmente (alterações climáticas, erosão da democracia, segurança e estabilidade global, para referir apenas alguns), que aspetos deve a Sociedade Civil considerar na reflexão sobre o papel que desempenha na sociedade?
Ana Luísa Silva (ALS): Esta é uma pergunta complexa, e creio que é importante contextualizar. Apesar de ser verdade que, um pouco por todo o mundo, as restrições ao espaço cívico e à atuação da sociedade civil nas suas várias formas (p.e., organizações não-governamentais, associações, movimentos sociais e sindicatos) se têm intensificado, estas restrições assumem configurações muito distintas em regiões e países diferentes. Se nas democracias ocidentais observamos fenómenos como a utilização excessiva da força policial durante manifestações pacíficas ou a condenação em tribunal de atos de desobediência civil por parte de ativistas climáticos (com penas pesadas), em regimes autoritários eliminam-se pilares centrais da democracia como a liberdade de associação, de manifestação ou de expressão – e, em casos extremos, como no Afeganistão, parte da população perde direitos básicos. Por outro lado, há investigação recente que mostra que, em certos contextos, o espaço cívico que se fecha para organizações da sociedade civil progressistas abre-se para forças que usam os mesmos meios (protesto, redes sociais, advocacy) para apoiar agendas autoritárias e populistas, muitas vezes racistas e xenófobas.
Esta complexidade, num mundo marcado por múltiplas crises de dimensão global, a maior de todas ligada ao fenómeno das alterações climáticas, deve ser tema de reflexão para qualquer organização da sociedade civil e abre lugar a perguntas como: em relação às crises que a humanidade hoje enfrenta, como me posiciono? Qual a minha missão e como posso contribuir para um mundo melhor? Devo repensar a minha atuação? E no contexto em que me encontro, que barreiras à minha atuação enfrento? Onde posso procurar apoio e solidariedade? Se não enfrento barreiras maiores, como posso dar o meu apoio e solidariedade àqueles que dela necessitam, sabendo que as crises no mundo globalizado são preocupação e responsabilidade comum?
Ines Pousadela (IP): Concordo completamente com a Ana Luísa. Já não falamos em "redução do espaço cívico" porque isso dá a ideia de que o espaço cívico é uniforme e está a ser reduzido da mesma maneira e na mesma medida para todos, o que não é de todo o caso – alguns atores regressivos têm agora mais espaço para se mobilizarem do que tiveram durante muito tempo. Assim, falamos de restrições ao espaço cívico – que são impostas por alguém, a alguém, por um motivo. Dentro da sociedade civil, certos segmentos são desproporcionalmente afetados por estas restrições. Isso depende muito do contexto, mas, globalmente, a nossa pesquisa mostra que aqueles que defendem a democracia e uma melhor governação, os defensores do clima e do ambiente, e as mulheres que lutam pelos seus direitos, especialmente em contextos repressivos, estão entre os mais afetados. Em algumas partes do mundo, também se trata de pessoas LGBTQI+, e muitas das pessoas visadas nas categorias já mencionadas são desproporcionalmente jovens. O facto de serem perseguidos é, de certa forma, uma medida de impacto – indica que estão a provocar mudanças, a tornar-se um incómodo para interesses poderosos e cada vez mais difíceis de ignorar.
É importante notar que esta crise do espaço cívico está a ocorrer num momento de regressão democrática, e essa regressão assume muitas formas, incluindo não apenas o regresso de golpes militares à moda antiga e a consolidação de autocracias, mas também a erosão da democracia a partir de dentro – por líderes autoritários eleitos democraticamente e, por vezes, extremamente populares. Neste contexto, a sociedade civil deve repensar a sua relação com os valores liberais e democráticos e os seus papéis igualmente importantes como a voz das maiorias ignoradas, defensora dos direitos humanos universais e contrapeso às tendências autoritárias, mesmo quando apoiadas por uma maioria.
A verdade é que a sociedade civil não parece estar a refletir muito sobre isto, mas sim a lutar para continuar a cumprir toda a panóplia dos seus papéis em contextos cada vez mais hostis.
ALS: Pegando na resposta da Ines, estava a refletir sobre os papéis que a sociedade civil tem desempenhado e as formas para que evoluiu ao longo da história, à medida que os contextos políticos, económicos e sociais mudaram. O que podemos dizer sobre as formas e os papéis da sociedade civil hoje? Se tirássemos uma “fotografia” da sociedade civil em todo o mundo, o que é que esta nos diria?
CP: É certamente importante distinguir entre os diferentes tipos e papéis da Sociedade Civil. No entanto, acredito que primeiro devemos olhar para o contexto mais amplo em que esta fragmentação de propósitos ocorre.
Recentemente, tem havido um aumento de movimentos que não partilham os valores da democracia (alguns dos quais são abertamente anti-democráticos). Embora muitas vezes sejam descritos como movimentos inorgânicos, rapidamente se transformam em partidos políticos com o objetivo de conquistar o poder. Também é bastante comum encontrar think tanks que são usados como caixas de ressonância para mensagens populistas, nacionalistas e xenófobas. A sociedade civil não está imune a estas tendências.
No entanto, se há algo que ainda distingue a sociedade civil (pelo menos uma parte dela), é a capacidade, mesmo em ambientes hostis, de continuar a amplificar a voz das comunidades marginalizadas e vulneráveis. Mesmo com restrições crescentes, a sociedade civil desempenha um papel fundamental na denúncia de violações dos direitos humanos, assim como da injustiça em geral.
Com mais ou menos fulgor, o debate sobre o papel da sociedade civil na sua dimensão política continua a ser feito. Não há maior prova de vitalidade cívica do que esta. Dado o contexto em que vivemos, acredito que é crucial aprofundar esta discussão. Talvez devêssemos começar por olhar para dentro e refletir sobre como podemos ajustar as nossas ações.
Num contexto de profunda transformação global, uma coisa é clara: a democracia, a defesa dos direitos humanos, o desenvolvimento sustentável e a paz dependem da nossa capacidade, como sociedade civil, de contornar os desafios que se colocam cada um destes aspetos e da nossa capacidade de defender os nossos valores e princípios fundamentais, mantendo uma voz forte e presente.
IP: Acho que gostaria de falar aqui sobre os muitos papéis positivos que a sociedade civil – ou, pelo menos, o segmento progressista e orientado para os direitos, da sociedade civil – desempenha no mundo complexo em que vivemos.
Num mundo de conflitos e crises, as organizações da sociedade civil desempenham uma vasta gama de funções, desde a prestação de serviços à defesa de causas, e desde o local ao global. Fornecem informações que salvam vidas, ajudam a prestar ajuda humanitária e a gerir serviços, recolhem provas de violações dos direitos humanos, apelam à desescalada, mobilizam-se em solidariedade, procuram levar à justiça quem é culpado de crimes, participam na construção da paz, fazem advocacia junto dos Estados e das instituições de governação global para o respeito pelos direitos humanos e pelo direito internacional humanitário, e procuram responsabilização por violações.
Num contexto de regressão, a sociedade civil continua a exigir ações contra as alterações climáticas descontroladas, a apoiar migrantes e refugiados, a reclamar os direitos das mulheres e das pessoas LGBTQI+, a responsabilizar os governos e a exigir respeito pelos direitos civis e democráticos. Neste "super ano eleitoral" de 2024, os esforços da sociedade civil para promover, defender e expandir a democracia têm sido particularmente visíveis: pressionando os governos a convocar eleições em atraso, para que as eleições sejam realizadas em condições livres e justas, para que as pessoas tenham as informações necessárias para fazer escolhas informadas, para que os votos sejam devidamente contados, para que os derrotados aceitem a derrota e para que os vencedores governem no interesse de todos, e o façam com respeito pelos direitos e liberdades
IP: Como é que a sociedade civil baseada nos direitos (o segmento da sociedade civil que continua a acreditar e a agir para defender a universalidade dos direitos humanos) está a resistir às atuais tendências regressivas, e o que mais pode ela fazer?
ALS: Felizmente, temos muitos exemplos de organizações, movimentos, e pessoas que através do seu ativismo e trabalho defendem todos os dias uma sociedade civil fundada nos Direitos Humanos e nos valores universais que eles representam. Penso, por exemplo, nos jovens portugueses e no grupo de mulheres suíças que levaram os seus países ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos; ou nas comunidades Masaai na Tanzânia que resistem contra a ordem de expulsão das terras em que vivem há séculos em nome da expansão do turismo de natureza com o apoio de grupos de cidadãos, organizações da sociedade civil e da igreja católica.
Estes e muitos outros exemplos mostram que ativar as possibilidades de trabalho em rede, que o mundo digital amplificou, pode ser extremamente importante na luta pela justiça social em qualquer parte do mundo (sobretudo tendo em conta a realidade hiper globalizada em que vivemos). É importante lembrar a importância de mobilizar as instituições de participação democrática existentes a vários níveis (internacional, regional, nacional, local), mas também reforçar as ligações com a academia, que está hoje muito mais aberta à necessidade de pensar o impacto que a investigação pode ter na construção de um mundo melhor. Por fim, acredito que a capacidade da sociedade civil para construir exemplos concretos de mudança é uma das suas maiores forças – a esperança é feita não só da capacidade de sonhar, mas da nossa capacidade de mostrar como os sonhos se podem tornar realidade.
CP: A resistência tem-se feito em contextos cada vez mais adversos - que o CIVICUS Monitor mostra de forma muito evidente. Portugal está ainda entre os poucos países que mantêm uma classificação positiva em termos de espaço cívico, mas temos tido contacto com cada vez mais situações de entidades de países parceiros que não podem dizer o mesmo.
Recentemente, chegaram-nos notícias da detenção de vários manifestantes na Guiné-Bissau que, sem acusação formada, foram sujeitos a tortura. Isto num contexto de consolidação de um regime que atropela sucessivamente as normas institucionais vigentes.
A forma como a Sociedade Civil guineense tem respondido a esta situação é um exemplo de resistência. Contudo, esta é uma situação que também mostra a importância da solidariedade global perante contextos repressivos. Perante este tipo de situações, é fundamental que a Sociedade Civil global se mobilize em solidariedade, procurando projetar a voz de todos e todas que vêem os seus direitos cívicos negados. É isso que vamos procurando fazer aqui em Portugal, levando às entidades relevantes, incluindo a decisores políticos, relatos das situações que nos chegam de vários países.
Penso que a Sociedade Civil deve por isso olhar cada vez mais para este aspeto, reconhecendo aqui a responsabilidade que tem em apoiar-se mutuamente perante situações adversas. Também é isto que nos permitirá construir uma rede de apoio mútuo suficientemente resiliente para enfrentar situações que se possam verificar no futuro, também no nosso contexto.