08 dez 2021 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Igualdade de Género, Cooperação para o Desenvolvimento
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de dezembro de 2021 "Igualdade de Género e Desenvolvimento" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.
Julieta González, Consultora Sénior de Advocacy para a UE na CARE International 1
As evidências demonstram que uma maior igualdade de género e a concretização dos direitos fundamentais das mulheres e das raparigas, bem como a sua participação ativa na formação das sociedades em que vivem, se traduz em contribuições positivas para a prosperidade das suas comunidades e sociedades.
No entanto, mulheres e raparigas continuam a ver os seus direitos violados diariamente e continuam a ser afetadas por decisões que têm um impacto direto nas suas vidas sem serem incluídas na tomada de decisões. Além disso, quando ocorrem crises ou os efeitos das alterações climáticas são sentidos, as mulheres e raparigas são as mais duramente atingidas e enfrentam riscos acrescidos de várias formas de violência baseada no género (VBG), incluindo violência doméstica, práticas nefastas como o casamento precoce e forçado, bem como violência sexual, exploração e abuso. Assistimos precisamente a isto no contexto da pandemia COVID-19, em que muitos países registaram um aumento acentuado da violência doméstica contra mulheres e raparigas 2. Além disso, quando a comida é escassa, as mulheres e as raparigas comem por último, e menos ainda. É mais provável que faltem à escola ou abandonem a escolaridade e são muitas vezes as primeiras a perder os seus empregos e os seus meios de subsistência. Assumem ainda mais responsabilidades como prestadoras de cuidados à sua própria família e a outros.
Ao mesmo tempo, continuamos a ver mulheres e raparigas a mobilizarem-se e a lutar diariamente para fazer avançar os seus direitos em todo o mundo e a promover mudanças para transformar as normas sociais subjacentes e as relações de poder que perpetuam as desigualdades de género, bem como a abrir mais espaços para elas e para outras mulheres fazerem ouvir a sua voz, tanto na esfera privada como pública.
As Nações Unidas reconheceram o papel central assumido pelo avanço da igualdade de género e o empoderamento das mulheres e raparigas em assegurar e fazer progressos efetivos em todos os outros Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), até 2030. A igualdade de género é reconhecida como um direito humano e um fim em si mesmo, bem como um meio para alcançar todos os outros ODS . É por isso que o ODS 5 (sobre igualdade de género) é um objetivo em si mesmo e várias das suas dimensões foram também integradas nos outros 17 ODS. Uma vez que os atores internacionais, nacionais e locais se comprometeram a alcançar estes objetivos, a cooperação internacional e a cooperação para o desenvolvimento têm um papel crucial a desempenhar na realização da igualdade de género.
A igualdade de género é reconhecida como um direito humano e um fim em si mesmo, bem como um meio para alcançar todos os outros ODS
Integrar o género nas políticas e programas e afetar recursos que correspondam às ambições definidas a nível global, é, portanto, central para assegurar que o trabalho conjunto com os países parceiros e outros atores seja eficaz e contribua para fazer avançar os ODS. Isto significa integrar o género nas políticas e programas desde a sua definição inicial até à implementação, mas também na monitorização e avaliação, e abrange uma série de abordagens e atividades, apresentadas abaixo.
Em primeiro lugar, os atores internacionais e da cooperação para o desenvolvimento devem reconhecer que as mulheres e raparigas não são afetadas igualmente pelos mesmos fenómenos, uma vez que as desigualdades de género são agravadas por outros fatores tais como raça, idade, casta, etnia, capacidade, estatuto migratório, orientação sexual, classe social, etc. Compreender isto, e colocar o foco nas mulheres e raparigas mais marginalizadas que enfrentam discriminações interseccionais, é um passo importante para a criação de políticas eficazes. Uma forma de o conseguir é promover a utilização sistemática de Análises de Género aprofundadas na formulação de políticas.
Integrar o género nas políticas e programas e afetar recursos que correspondam às ambições definidas a nível global, é, portanto, central
As políticas e programas devem aplicar uma Abordagem Transformativa de Género, o que significa adotar estratégias que procurem ir além do auto-aperfeiçoamento individual entre mulheres e raparigas e trabalhar no sentido de mudar as normas sociais subjacentes, as dinâmicas e estruturas de poder, bem como a legislação discriminatória que serve para reforçar as desigualdades de género. O empoderamento das mulheres e das raparigas e o envolvimento de homens e rapazes são críticos para provocar a transformação. Os atores internacionais e da cooperação para o desenvolvimento, em particular organizações multilaterais e doadores, concentram os seus esforços em leis, políticas, procedimentos e serviços através de trabalho diplomático e com apoio aos governos parceiros nacionais. Mas isto não é suficiente para incentivar a mudança a todos os níveis. O apoio ao trabalho da sociedade civil - em particular das OSC de mulheres - que trabalham a nível comunitário para abordar normas sociais discriminatórias profundamente enraizadas, nas quais a política do topo para a base pode não ter qualquer efeito, torna-se essencial para garantir que os programas sejam transformadores em termos de género.
O apoio ao trabalho da sociedade civil - em particular das OSC de mulheres - que trabalham a nível comunitário para abordar normas sociais discriminatórias profundamente enraizadas, (…) torna-se essencial
Outro elemento a considerar ao integrar o género nas políticas e programas é que as mulheres, raparigas, homens e rapazes têm pontos de vista e perspetivas específicos, mas as mulheres são constantemente deixadas de fora da tomada de decisões a nível local, comunitário e internacional . Isto compromete a eficácia das políticas e respostas. Além disso, as mulheres e raparigas ainda são frequentemente retratadas apenas como vítimas, o que as impede de influenciar e tomar as decisões que mais as afetam. Por conseguinte, a voz, participação e liderança das mulheres e raparigas devem ser integradas nos processos de tomada de decisão que definem políticas e programas de género na cooperação internacional e para o desenvolvimento. Os atores internacionais devem procurar proativamente os pontos de vista das organizações locais de direitos das mulheres e das organizações lideradas por mulheres e defender no seio do país a inclusão das organizações lideradas por mulheres e das organizações de direitos das mulheres nas estruturas de coordenação e de tomada de decisões a nível nacional e local.
Uma inclusão mais sistemática da igualdade de género e dos direitos das mulheres e das raparigas na cooperação internacional e para o desenvolvimento significa assegurar a presença do género no diálogo político com os países parceiros, incluindo os direitos humanos e o diálogo social. Mas significa também integrar o género em outros setores de cooperação entre países, onde a análise e as mensagens de género são menos comuns, tais como o diálogo sobre comércio, agricultura, energia, clima e digitalização.
Finalmente, políticas e programas ambiciosos para progredir na igualdade de género exigem uma atribuição de recursos que corresponda a estas ambições. Os atores internacionais devem assegurar orçamentos apropriados para a integração da perspetiva de género e para o trabalho específico de género. De acordo com o CAD/OCDE, os membros do CAD comprometeram-se com um total médio de 53 mil milhões de USD de Ajuda Pública ao Desenvolvimento por ano em 2018-19 para a igualdade de género. Isto representa 44,5% da APD bilateral alocável3. Embora estes compromissos tenham aumentado ao longo do tempo, o apoio à igualdade de género como objetivo principal - ou os recursos dedicados à igualdade de género - permanecem baixos, representando 5% do total da ajuda bilateral (5,6 mil milhões de USD). Isto significa que mais pode e deve ser feito para aumentar o financiamento para a integração da perspetiva de género em todos os setores, mas especialmente para ações que visem o género.
Os atores internacionais devem assegurar orçamentos apropriados para a integração da perspetiva de género e para o trabalho específico de género.
O financiamento das organizações e movimentos de defesa dos direitos das mulheres ascendeu a 690 milhões de USD de ajuda bilateral em 2018-2019, representando aproximadamente 1,3% da APD bilateral. Aumentar o montante e a qualidade do financiamento que vai para as organizações de direitos das mulheres e raparigas nos países parceiros tem o potencial de desenvolver a liderança que estas organizações têm e contribuir para promover o progresso no sentido de uma maior igualdade de género.
Em suma, ainda há espaço para melhorar a contribuição da cooperação internacional e da cooperação para o desenvolvimento, seja através das suas políticas ou dos seus programas para promover a igualdade de género no mundo4. Os cálculos do Fórum Económico Mundial de 2021 indicam que serão necessários 135,6 anos para alcançar a igualdade de género no mundo . Portanto, tem de ser feito mais!
Notas:
1 Este artigo foi redigido pela autora, evidenciando análises e abordagens da CARE International. Para mais informações, consultar: https://www.care-international.org/
2 Ver o briefing da CARE sobre os impactos da COVID-19 nas mulheres e raparigas, disponível aqui: https://www.care international.org/files/files/Gendered_Implications_of_COVID-19-Full_Paper.pdf
3 OECD-DAC Network on Gender Equality (GENDERNET), 2021: Development finance for gender equality and women’s empowerment: A 2021 snapshot. Disponível aqui: https://www.oecd.org/development/gender-development/Development-finance-for-gender-equality-2021.pdf
4 Consultar: https://www.weforum.org/reports/ab6795a1-960c-42b2-b3d5-587eccda6023
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de dezembro de 2021 "Igualdade de Género e Desenvolvimento" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.