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06 dez 2023 Fonte: REVISTA DA PLATAFORMA PORTUGUESA DAS ONGD Temas: Educação para o Desenvolvimento e a Cidadania Global, Economia solidária / alternativa / Microcrédito, Cidadania e Participação

Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de novembro de 2023 "Economia, pessoas e planeta: que alternativas para o bem-estar" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.

 

Por: Eliana Madeira - Graal

“A Carolina acompanhou a Rosa à Segurança Social; a Rosa plantou um canteiro de ervas aromáticas para o Rafael que, por sua vez, ensinou à Inês a cozinhar seitan, tendo esta última arranjado a máquina de costura da Carolina …”

Ao olhar para os registos dos movimentos de contas realizados numa agência do Banco de Tempo, onde os membros trocam tempo por tempo e onde não há circulação de dinheiro, depressa nos apercebemos da diversidade de serviços que aí se trocam e intuímos a multiplicidade das relações que se geram e que se aprofundam no seu interior, entre pessoas de diferentes idades, condições de vida, origens…

Os serviços trocados no Banco de Tempo correspondem a atividades realizadas com gosto pelos seus membros. É esperado que as pessoas usem o seu tempo de uma forma gratificante, que amplie o seu bem-estar e as realize. O tempo é o recurso que temos mais valioso, é, como alguém dizia, “o tecido de que é feito as nossas vidas”. Na verdade, quando acaba o nosso tempo, acaba a nossa vida. Faz, por isso, sentido que o utilizemos da melhor forma.

Todos os serviços trocados no Banco de Tempo são igualmente valorizados, a nenhum é atribuído mais ou menos valor do que aos outros. O valor de cada serviço é determinado pela sua duração. Aqui, não faz sentido falar de preços, uma vez que todas as horas têm o mesmo valor, independentemente do serviço prestado e de quem o presta.

Valorizar de forma igual o tempo de todas as pessoas significa reconhecer que todas têm igual valor e dignidade, independentemente do seu sexo, idade, origem, habilitações, condições de vida… rejeitam-se as hierarquias e a estratificação social, ao contrário do que acontece no modelo socioeconómico dominante, que diferencia as pessoas em função das suas capacidades económicas e produtivas e invisibiliza e deprecia atividades tradicionais, ligadas ao cuidado, por exemplo.

Este sistema de trocas solidárias de tempo baseia-se, assim, na igualdade e também na reciprocidade, dado que há obrigatoriedade de se dar e de se receber tempo. Este princípio assenta nas convicções de que todas as pessoas têm recursos podendo fazer algo para melhorar a vida de outras e, de que ninguém é autossuficiente e de que todas as pessoas têm vulnerabilidades, necessidades, pelo que podem beneficiar do tempo de outras.

A incorporação deste princípio implica que quem se envolve na relação solidária intercale os papéis, por um lado, de agente e, por outro, de beneficiário/a de solidariedade. A reciprocidade introduz uma distinção em relação às conceções e práticas mais convencionais de solidariedade, que têm um carácter mais unilateral e caritativo, frequentemente gerando dependência e descurando os recursos das pessoas apoiadas, descritas apenas “pelo que lhes falta”.

É ainda de salientar que as trocas - que podem ocorrer entre indivíduos, organizações ou entre ambos - não são diretas. A reciprocidade é multilateral: quando um membro do Banco de Tempo recebe um serviço, as horas que a realização do mesmo envolveu são debitadas na sua conta e creditadas na conta do membro que o prestou. Estas horas creditadas poderão ser usadas para obter qualquer outro serviço disponibilizado por qualquer outro membro do Banco de Tempo.

Orientados pelos princípios antes descritos, existem Bancos de Tempo em funcionamento em vários países do mundo e em várias cidades portuguesas, sendo maioritariamente dinamizados por mulheres.  O Banco de Tempo foi trazido para Portugal pelo Graal que tem estabelecido, desde 2002, parcerias com entidades de natureza diversa que dão vida ao Banco de Tempo em diferentes territórios.  O Graal tem assumido a coordenação da rede nacional do Banco de Tempo, criando oportunidades de encontro e formação das equipas dinamizadoras locais, desenvolvendo instrumentos operativos e divulgando esta proposta transformadora.

Desvinculando-se das lógicas da economia de mercado, o Banco de Tempo inscreve-se numa “outra economia”, não-mercantilista e baseada em valores éticos. Os princípios, os valores e as práticas distintos são, de certa forma, antagónicos relativamente aos que enformam o modelo capitalista da economia.

Desde logo, destacamos a ausência de dinheiro no sistema. Consideramos que tem um forte valor simbólico o dispensar-se o dinheiro no quadro de uma sociedade materialista e consumista como é aquela em que vivemos, onde quase tudo foi transformado em mercadoria (desde o cuidado ao lazer), onde o dinheiro assume uma enorme centralidade nas relações entre as pessoas e muitas vezes em relação a estas (Graal, 2015), e onde o ter é assumido como o principal requisito para uma vida feliz.

O Banco de Tempo reduz, desta forma, a dependência do sistema monetário convencional e abre a possibilidade de pessoas com menor acesso a recursos financeiros usufruírem de serviços que não estariam ao seu alcance se tivessem de usar dinheiro para os obter.

Não faz sentido, nem é possível, no quadro desta iniciativa, falar-se em lucros ou em acumulação e concentração de riqueza - projetos que são centrais no sistema capitalista. Na realidade, no Banco de Tempo é indiferente as contas serem positivas ou negativas, até a um limite de crédito ou de débito de 20 horas.

O Banco de Tempo tem funcionado como um antídoto contra fenómenos, indissociáveis do modelo capitalista, como são o individualismo, a fragmentação social, a competição e a concorrência. Andando contra-a-corrente, o Banco de Tempo gera dinâmicas comunitárias conviviais e cooperativas, reforça laços de confiança, aproxima pessoas que habitam no mesmo território, promove relações horizontais de reciprocidade e entreajuda, restaurando a dignidade de pessoas em situação de vulnerabilidade e exclusão social (Seyfang et al., 2013).

Temos a perceção de nos movermos num espaço singular, onde se vive, já no presente, muito do que desejamos para o nosso futuro coletivo: realidades humanas mais solidárias, justas e inclusivas, onde há reconhecimento e lugar para todas as pessoas.

Manter o movimento do Banco de Tempo vivo e atuante é, no entanto, um desafio, que exige o empenho e criatividade e resistência: porque não esperamos facilidades quando o que propomos se distancia e se opõe, tão radicalmente, do modo como hoje vivemos em sociedade. Mas vamos caminhando que, como cantava José Mário Branco, “o nosso chão tem sonhos e vontade”.

 

Bibliografia:

Graal, 2015, A experiência do Banco de Tempo em Portugal: tecendo sentidos e mudanças.

Seyfang, Gill & Longhurst, Noel, 2013. "Growing green money? Mapping community currencies for sustainable development," Ecological Economics, Elsevier, vol. 86(C), pages 65-77

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