24 nov 2023 Fonte: REVISTA DA PLATAFORMA PORTUGUESA DAS ONGD Temas: Advocacia Social e Política, Economia solidária / alternativa / Microcrédito
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de novembro de 2023 "Economia, pessoas e planeta: que alternativas para o bem-estar" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.
Por: Amadu Djaló - Doutorando em Estudos Africanos (ISCTE-IUL)
Embora desenvolvimento fosse, frequentemente, utilizado como sinónimo de bem-estar, em rigor, ele não o é. Aliás, o conceito de desenvolvimento só assumiu, de forma explícita, o bem-estar das populações (que se traduz na melhoria da sua qualidade de vida e no aliviamento do seu sofrimento) a partir da década de 1970, pois antes disso, desenvolvimento se referia simplesmente ao processo de transformação de relações de produção dentro de uma determinada nação1, porquanto ter uma vida (economicamente) próspera era vista como sinónimo de viver bem, e, portanto, o desenvolvimento era concebido como sinónimo de crescimento económico.
Porém, a própria relação que sempre se acreditou existir entre o aumento do PIB per capita e o bem-estar experimentado pelo sujeito tem sido posta em questão, porquanto a correlação positiva existente entre o crescimento económico e a perceção de bem-estar é insignificante, sobretudo, depois de atingir um certo nível de afluência. Portanto, é escusado dizer que o bem-estar do individuo vai muito além do bem-estar material.
O modelo de desenvolvimento, neste artigo considerado como modelo de bem-estar Ocidental, ao atribuir uma maior importância à prosperidade material, negligenciou-se doutras dimensões da vida (espiritual e cultural), tendo, por isso, outorgado um papel de relevo à ordem económica, por ter sido a ordem escolhida para articular os fins do próprio modelo – atingir a afluência material.
Desde então, a economia (e os seus respetivos indicadores e variáveis) têm servido de parâmetro através do qual o progresso das sociedades é avaliado.
Nem todas as abordagens do desenvolvimento adotaram este paradigma, embora este tenha sido o paradigma predominante, principalmente até aos finais da década de 1960. A partir desta data, porém, houve uma onda de críticas ao conceito que se desembocaram em propostas de reformulação do mesmo, e como resultado das quais, dimensões não económicas (ambiental, social, cultural) foram acrescentadas, embora nenhuma delas pusesse verdadeiramente em questão a centralidade do crescimento para atingir o desenvolvimento.
Pois todas estas abordagens partiam do mesmo pressuposto: desenvolvimento enquanto único horizonte desejável – i.e., a única finalidade legítima que uma nação poderia almejar, ou seja, todas as sociedades humanas deveriam ter o desenvolvimento como o seu projeto social, porquanto todas elas se dirigem em direção ao mesmo fim, ainda que em ritmos diferentes. As que se encontram no topo da pirâmide têm a responsabilidade moral de auxiliar às que estão na base, e estas últimas têm a obrigação de seguir o caminho percorrido pelas primeiras, lideradas pelos EUA desde a segunda guerra mundial.
Volvidas sete décadas depois da inauguração da era do desenvolvimento2, podemos afirmar que as promessas do desenvolvimento –a replicação do estilo de vida Euro-Americana– estão longe de serem concretizadas, ainda que tenha havido avanços significativos nos países “subdesenvolvidos” como: a redução da taxa de mortalidade infantil, o aumento de esperança média de vida, etc.
Além disso, há muito tempo que o planeta teria explodido, se todos os países “subdesenvolvidos” tivessem concretizado o nível de progresso prometido pelo discurso de desenvolvimento.
No fundo, essa conceção de bem-estar Ocidental é tão rica quanto parcial, porquanto, não só não reflete a conceção de bem-estar de todas as sociedades no mundo, já que existem outras modalidades de apreensão do real e outras formas de conceber a “vida boa”, assim como estamos perante um modelo insustentável, pois coloca em risco as condições da própria existência.
No entanto, se quisermos teorias de desenvolvimento menos eurocêntricas e mais ricas, propostas de busca pela felicidade e pelo bem-estar vinda doutras latitudes devem ser bem-vindas, pela pluralidade e enriquecimento que nos permitem, e pelas relativizações das tendenciais arrogâncias a que nos obrigam3. É neste contexto que a proposta de Buen-vivir será analisada.
Buen-vivir
Buen-Vivir representa um conjunto de propostas que questionam a lógica dominante do desenvolvimento, pois trata-se de uma visão do mundo que pressupõe uma valorização da natureza, porque considera o ser humano como uma parte integrante do tecido da natureza.
Em diversas das suas encarnações, o Buen-vivir rompe com a visão antropocêntrica do mundo e convida à possibilidade de construção de uma ordem na qual o ser humano e a natureza coexistem em harmonia.
Enquanto alternativa ao desenvolvimento, Buen-vivir surgiu como resposta aos impactos negativos (sociais e ambientais) decorrentes das estratégias do desenvolvimento, e um dos elementos decisivos na formulação do conceito tem sido a contribuição dos saberes e dos valores dos povos dos Andes, embora tivesse bebido de experiências com origem no próprio Ocidente, na medida em que fora influenciado pelas correntes teóricas críticas ao capitalismo, nomeadamente: o movimento feminista e ecologista4.
O conceito ganhou a proeminência graças aos debates políticos que decorreram na América latina, no princípio deste século, mas, sobretudo, devido à inclusão do conceito nas discussões constitucionais da Bolívia e do Equador por conta das alianças entre os movimentos indígenas e os diferentes atores sociais e políticos.
Um elemento-chave para a compreensão de Buen-vivir seria partir do princípio de que o ser humano (enquanto individuo) não é o centro das preocupações, mas sim o ser humano dentro da comunidade. Assim, além duma dimensão ambiental, Buen-vivir pressupõe uma forte dimensão comunitária5.
Estamos perante uma visão biocêntrica (contraposta a uma visão antropocêntrica) do mundo, porquanto a natureza é considerada como a fonte da vida, da qual o próprio ser humano é uma parte integrante6.
É uma noção de bem-estar assente em valores éticos que extravasam os valores utilitaristas da economia capitalista, pois a natureza deixa de existir como um simples objeto, passando a adquirir o estatuto de sujeito de direito, o que representa um marco histórico na resistência dos povos indígenas face à monocultura do Estado (enquanto única forma de organização política e económica), tendo concedido direitos às comunidades indígenas, às coletividades de atenção prioritária, e à própria natureza, rompendo com a conceção clássica e hierárquica dos direitos e liberdades7.
Buen-vivir representa, assim, uma visão plural que procura reconhecer a diversidade das modalidades de vida presentes no mundo e através das quais diferentes povos dão sentido à sua existência. Mas, ele não deve ser interpretado como um plano rígido de mudança, mas antes como um modelo que poder-nos-á permitir repensar o modelo de desenvolvimento na medida em que nos permite vislumbrar os limites deste último, assim como questionar as bases epistemológicas dum modelo antropocêntrico.
Para mais, poder-nos-á oferecer contribuições importantes na conceção de um “projeto civilizacional” que colocará o ser humano no centro das suas preocupações sem, por isso, negligenciar as dimensões ambiental, cultural, e espiritual, porque o ser humano é tão material quanto espiritual.
Notas:
1. Ferguson, J. (1990) The anti-politics machine: “development”, and depoliticization, and bureaucratic power in Lesotho. Cambridge: Cambridge Univ. Press.
2. Inaugurada pelo célebre discurso do então presidente norte americano, Truman, em 1949.
3. Amaro, R.R. (2017) ´Desenvolvimento ou Pós-Desenvolvimento? Des-Envolvimento e... Noflay´, Cadernos de Estudos Africanos 34, 75-111.
4. Acosta, A. Gudynas, E. (2011) ´La renovación de la crítica al desarrollo y el buen vivir como alternativa´. Utopía y praxis latinoamericana, 16(53), 71-83.
5. Acosta, A. (2013) El Buen Vivir: Sumak Kawsay, una oportunidad para imaginar otros mundos. Barcelona: Icaria.
6. Gudynas, E. (2011). ´Buen Vivir: today's tomorrow´. development, 54(4), 441-447.
7. Vivar, F.A.C. 2018, ´Travesías dentro y fuera del estado. Contribuciones de las waorani del yasuní frente al desarrollismo neoextractivo en ecuador´, Tese de Doutoramento, Universidade de Coimbra, Coimbra.