19 nov 2020 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Sociedade Civil, Cooperação para o Desenvolvimento, Advocacia Social e Política

Casa dos Direitos | ACEP
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de outubro de 2020 "Perspetivas para o Futuro da Cooperação Portuguesa". Leia ou faça download da edição completa aqui.
Autora: Ana Filipa Oliveira, Membro do Conselho Directivo da ACEP
Num momento em que se reflete sobre o futuro da Cooperação Portuguesa, com a elaboração em curso do seu novo conceito estratégico, é fulcral debater e relevar o papel da sociedade civil dos países parceiros neste âmbito, enquanto atores cruciais na promoção proteção do espaço cívico e dos Direitos Humanos. Aqui traçamos o percurso de uma parceria entre ONG portuguesas e guineenses na defesa dos Direitos Humanos e na monitoria de políticas, num contexto particularmente desafiante como é o da Guiné-Bissau.
Imagine-se um lugar de tortura e de violação sistemática dos Direitos Humanos, antro na época colonial e no período pós-independência, tornar-se um lugar de promoção e de defesa de Direitos Humanos. Desde 2012 que esse lugar é uma realidade na Guiné-Bissau, no centro da capital. Contra (quase) todas as probabilidades, a chave do edifício que alberga hoje a Casa dos Direitos foi entregue pelas autoridades guineenses a um conjunto de organizações da sociedade civil (três portuguesas e oito guineenses[1]) que, em pouco mais de seis meses, a reabilitou para abrir portas à sociedade guineense, com o apoio, desde a primeira hora, da Cooperação Portuguesa.
Desde então que a Casa dos Direitos tem funcionado duplamente como farol das organizações da sociedade civil e porto de abrigo para defensores e activistas de Direitos Humanos. Nem mesmo o Golpe de Estado de 12 de Abril de 2012, pouco mais de um mês depois da abertura, demoveu a Casa dos Direitos da sua missão vigilante, tendo permanecido de portas abertas mesmo nos períodos mais críticos, apesar de localizada a dois passos do Forte da Amura.
“É uma luta para ter pão, para ter terra, mas livremente. Uma luta para ter escolas, para que as crianças não sofram, para ter hospitais. É assim a nossa luta. É também uma luta para mostrar à face do mundo que somos gente com dignidade”
A frase de Amílcar Cabral que ladeia o pátio da entrada serve de guia e de afirmação da sua missão. Em oito anos de existência, a Casa dos Direitos tornou-se uma referência e um exemplo de união de esforços, de sinergias e de competências da sociedade civil local (e não só) em torno da defesa de um Estado democrático, da liberdade de expressão e da defesa dos Direitos Humanos. Os direitos das mulheres, os direitos das crianças e os direitos das pessoas detidas foram as primeiras áreas prioritárias de trabalho da Casa, desenvolvendo campanhas de advocacy e de influência política.
... a Casa dos Direitos tem funcionado duplamente como farol das organizações da sociedade civil e porto de abrigo para defensores e activistas de Direitos Humanos
Pouco depois das eleições gerais de 2014 na Guiné-Bissau, num período de grande entusiasmo, optimismo e de esperança, a Casa dos Direitos, juntamente com a Associação para a Cooperação Entre os Povos (ACEP), a Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH), a Associação dos Amigos da Criança (AMIC) e a Tiniguena - Esta Terra é Nossa! (todas organizações pertencentes ao consórcio) desenvolveram o projecto Ora di Diritu, porque entenderam que era a hora dos Direitos Humanos no país.
Durante esse momento propício (chamemos-lhe ambiente favorável), foram desenvolvidas diversas acções de sensibilização, algumas das quais em parceria com a televisão pública guineense. E a sociedade civil era entendida como parceira de diálogo das autoridades nacionais, trabalhando de forma estrita com deputados à Assembleia Nacional Popular, na melhoria do enquadramento legal para protecção de mulheres e meninas vítimas de violências várias e na protecção das crianças talibés, para citar alguns dos dossiês.
Porém, o contexto político favorável foi interrompido com a demissão do Governo constitucional e um novo capítulo de instabilidade foi inaugurado, colocando grandes desafios às organizações da sociedade civil e aos seus activistas. Assistimos à degradação progressiva do espaço cívico no país, seja pela perseguição de defensores de Direitos Humanos, seja pelo silenciamento de órgãos de comunicação social (em Março de 2020, a rádio e televisão públicas guineenses estiveram fora de emissão e, em Julho, a Rádio Capital FM, crítica à actual governação, foi alvo de vandalismo, tendo ficado inoperante durante alguns dias[2]).
Mesmo nos períodos mais adversos, a Casa dos Direitos não cede à sua missão de denúncia e de promoção de direitos. Anualmente, é organizada uma Roda de Mulheres para discutirem os seus direitos, e o Observatório dos Direitos, criado pela ACEP, pela LGDH e pelo Centro de Estudos sobre África e do Desenvolvimento do ISEG e com sede na Casa, analisa a situação dos Direitos Humanos no país, através de um sistema de recolha de indicadores em todo o país, em áreas como a Educação, a Saúde, a Justiça, a Habitação, entre outras. A sua análise permite perceber tendências, confirmar a degradação da situação dos direitos no país e informar, de forma sustentada, as campanhas de advocacy e de influência política, mesmo nos períodos mais críticos e menos favoráveis à actuação cívica.
Mesmo nos períodos mais adversos, a Casa dos Direitos não cede à sua missão de denúncia e de promoção de direitos
Também anualmente, a Casa dos Direitos e organizações parceiras organizam a Quinzena dos Direitos. Já na sua sexta edição, as duas primeiras semanas de Dezembro são dedicadas ao debate, djumbais, lançamentos de livros, feira do livro, exposições de fotografia, música e teatro para abordar a situação dos Direitos Humanos. Integrada na Quinzena, no Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de Dezembro), a Casa organiza a sessão de entrega do Prémio de Jornalismo em Direitos Humanos, que galardoa a melhor reportagem televisiva, radiofónica e de imprensa em torno da promoção dos Direitos. A adesão de outras organizações da sociedade civil - nacionais e internacionais - à Quinzena tem sido exponencial de edição para a edição. Em 2019, numa altura de grande crispação política e de consequente fechamento do espaço cívico, a Quinzena dos Direitos acolheu quase 40 iniciativas, de mais de duas dezenas de organizações. A par da Quinzena, a Casa tem um programa anual com exposições e edição de livros da colecção Desafios.
A Casa dos Direitos (…) vem demonstrar a necessidade de a Cooperação Portuguesa a apostar em iniciativas de reforço democrático
Em 2020, e já em plena pandemia, a Casa dos Direitos procurou permanecer de portas abertas (embora com as restrições necessárias) e continuar o diálogo com a sociedade, promovendo debates online sobre o impacto da pandemia na educação, na saúde, na economia e nos direitos, vistos por mais de um milhar de utilizadores do Facebook. E quis também saber como os guineenses estão a lidar com a crise, contando histórias na primeira pessoa de vendedoras ambulantes, taxistas, músicos rap, estudantes, jornalistas... E é assim que a vemos e que pretende continuar no futuro: de portas abertas e em diálogo com a sociedade.
A Casa dos Direitos é o exemplo vivo da importância do papel sociedade civil, enquanto actor vigilante da actuação do Estado, mesmo nas circunstâncias mais adversas, e vem demonstrar a necessidade de a Cooperação Portuguesa continuar a apostar em iniciativas de reforço democrático e de promoção de um ambiente favorável à actuação do espaço cívico e de defesa dos Direitos Humanos.
[1] Da composição inicial do consórcio, fazem parte: ACEP, AD, AMIC, CES/NEP, CIDAC, LGDH, TINIGUENA, RA, RENARC, Senim Mira Nassequê e IUCN. Actualmente, integram a Casa seis ONG: a ACEP, AMIC, LGDH, RENAJ, TINIGUENA e RENLUV

Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de outubro de 2020 "Perspetivas para o Futuro da Cooperação Portuguesa". Leia ou faça download da edição completa aqui.