14 nov 2024 Fonte: João Paulo Avelãs Nunes Temas: Cooperação para o Desenvolvimento, Paz e gestão de Conflitos
Este artigo foi originalmente publicado na Edição nº 27 (novembro de 2024) da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD: "Um Mundo em Mudança: que espaço para a Cooperação?". Leia ou faça download da Revista aqui.
Por João Paulo Avelãs Nunes, Professor Associado na Secção de História do Departamento de História, Estudos Europeus, Arqueologia e Artes da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e Investigador Integrado do Centro de Estudos Interdisciplinares da UC
Vive-se hoje uma conjuntura de afirmação e de recusa — ou de desvalorização — da identificação e da garantia de direitos humanos; de crise das democracias e do multilateralismo, económico-social e da atenuação das desigualdades, dos equilíbrios ambientais e da salvaguarda dos recursos naturais não renováveis, de uma governança cuidadosa da multiculturalidade e do combate a formas de discriminação, de uma regulação da disseminação de novas tecnologias e do debate cultural. Deparamo-nos, pois — indivíduos, organizações, instituições e respectivas concepções de senso comum e/ou ideológicas mais ou menos marcadas pela apropriação de conhecimento científico —, com dificuldades e com oportunidades acrescidas. Esse aumento de tensão será ainda mais relevante no âmbito das actividades de cooperação.
Procura-se, assim, neste texto esboçar um balanço historiográfico (isto é, científico ou objectivante) sobre as formas, os actores e os objectivos de cooperação existentes nos séculos XX e XXI
Procura-se, assim, neste texto esboçar um balanço historiográfico (isto é, científico ou objectivante) sobre as formas, os actores e os objectivos de cooperação existentes nos séculos XX e XXI. Lembro, a este propósito, a presença no referido campo de indivíduos e de organizações de sociedades civis, de sistemas políticos e de aparelhos de Estado, de Organizações Internacionais. Saliento que, nomeadamente até meados da década de 1970, para além de países independentes — hegemónicos, dominantes ou subordinados —, observa-se a presença de populações/territórios não autónomos (domínios, protectorados, colónias, mandatos). Destaco, também, a evidência de o sistema de relações internacionais ter assumido, no período em apreço, diversas configurações e várias lógicas de funcionamento.
Talvez seja possível assumir que, até à etapa final da Segunda Guerra Mundial (1944/1945), o sistema de relações internacionais baseou-se, sobretudo, em laços bilaterais de dominação ou de rivalidade. O prolongamento da vigência de Impérios e a Primeira Grande Guerra, a Grande Crise das décadas de 1920 e 1930, a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto decorreram dessa configuração
Talvez seja possível assumir que, até à etapa final da Segunda Guerra Mundial (1944/1945), o sistema de relações internacionais baseou-se, sobretudo, em laços bilaterais de dominação ou de rivalidade. O prolongamento da vigência de Impérios e a Primeira Grande Guerra, a Grande Crise das décadas de 1920 e 1930, a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto decorreram dessa configuração. Concretizadas pela embrionária Sociedade das Nações, por Estados, por organizações ou individualidades de sociedades civis, as iniciativas de cooperação ocorridas resultaram, predominantemente, em esforços tanto de atenuação de fenómenos disruptivos agudos — acidentes naturais e epidemias, conjunturas de fome ou situações de guerra civil — como de reprodução de lógicas de crescimento económico e/ou de distribuição explicitamente assimétrica da riqueza gerada.
Ao longo período da Guerra Fria (1947-1991), mau grado vários factores limitativos, ter-se-á reconhecido que a cooperação é indispensável quando se visa promover, com certa abrangência, o multilateralismo e o desenvolvimento económico-social (através, por exemplo, da ONU, da segunda vaga de descolonizações e do Movimento dos Países Não Alinhados; da operacionalização das teorias económicas keynesiana ou estruturalista e de uma globalização regulada; do Plano Marshall no âmbito da OECE e do apoio à reconstrução do Japão; da criação da CEE e da OCDE, da EFTA e do COMECON; do patrocínio das transformações sociais globais verificadas na Coreia do Sul e em Taiwan). O facto de, quer os EUA e a URSS, quer potências intermédias terem procurado valorizar as respectivas posições a partir das modalidades de cooperação que dinamizaram não invalidaria a importância absoluta de algumas das metas alcançadas.
O facto de, quer os EUA e a URSS, quer potências intermédias terem procurado valorizar as respectivas posições a partir das modalidades de cooperação que dinamizaram não invalidaria a importância absoluta de algumas das metas alcançadas
No pós-Guerra Fria (1991-...) observam-se tendências contraditórias relativamente à configuração e à valoração das actividades de cooperação. Assiste-se, por um lado, a posturas de condenação do multilateralismo e da democracia, de revalorização das ditaduras e/ou do bilateralismo assimétrico; por outro lado, à identificação do desenvolvimento integrado/sustentável, da democracia e do multilateralismo como objectivos de longo prazo de iniciativas de cooperação. Critica-se a cooperação como forma encapotada de exploração e aculturação do “Sul global” pelo “Norte global” mas, em sentido inverso, reconhece-se que muitas escolhas feitas em países periféricos — e, mesmo, em Estados semi-periféricos — têm como consequência o inviabilizar ou a redução dos efeitos positivos de projectos de cooperação (Sul-Sul e Norte-Sul).
Advogo, assim, enquanto historiador, que é fundamental reconstituir e analisar, tão objectivantemente quanto possível em cada momento, tanto as opções concretizadas no passado — consideram-se aqui as actividades de cooperação, o século XX e as primeiras décadas do século XXI — como as respectivas implicações. Que a apropriação crítica desse conhecimento científico contribui significativamente para qualificar a actuação, cívica e profissional, dos indivíduos, das organizações e das instituições; viabiliza a produção de conhecimento tecnológico de base científica e a aplicação de soluções tecnológicas operatórias (mais ou menos injustas ou justas, predatórias ou sustentáveis).
Um dos vectores indispensáveis à elaboração de conhecimento científico — historiográfico e outros — é a selecção e/ou a estruturação de conceitos adequados ao objecto de estudo delimitado. No que concerne às categorias teóricas necessárias a uma melhor compreensão das experiências de cooperação existentes nos séculos XX e XXI, refiro, nomeadamente, as de sistema de relações internacionais unipolar, bipolar ou multipolar, unilateralista ou multilateralista; as de regime liberal conservador, monarquia autocrática, regime demoliberal, ditadura (autoritária e/ou totalitária), regime democrático, Governo populista e autoritário; as de políticas sócio-económicas marginalistas e globalizadoras liberais ou proteccionistas, colectivistas ou corporativistas e protecionistas ou autárcicas, keynesianas ou estruturalistas e de globalização regulada, monetaristas e globalizadoras neo-liberais.
A qualidade de vida da quase totalidade dos indivíduos envolvidos melhorou quando, nos séculos XX e XXI, motivados por altruísmo e/ou por preocupações de restituição, por egoísmo racional e/ou por desejo de afirmação própria, os seres humanos, as sociedades e as Organizações Internacionais optaram por correlacionar vanguardismo e diálogo/negociação, competição e cooperação
Proponho, também, a hipótese segundo a qual a qualidade de vida da quase totalidade dos indivíduos envolvidos melhorou quando, nos séculos XX e XXI, motivados por altruísmo e/ou por preocupações de restituição, por egoísmo racional e/ou por desejo de afirmação própria, os seres humanos, as sociedades e as Organizações Internacionais optaram por correlacionar vanguardismo e diálogo/negociação, competição e cooperação. A qualidade de vida da grande maioria dos indivíduos participantes degradou-se, por sua vez, no período delimitado, sempre que, motivados por egoísmo irracional ou por desprezo face ao outro, prevaleceram lógicas quer de isolamento quer de dominação, exploração e/ou discriminação; de vanguardismo modernizador, conservador ou tradicionalista.