10 dez 2021 Fonte: Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Sociedade Civil, Igualdade de Género, Cooperação para o Desenvolvimento
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de dezembro de 2021 "Igualdade de Género e Desenvolvimento" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.
Alice Frade, Dir. Executiva da P&D Factor
Práticas que, ancoradas em argumentos de tradição e cultura, se traduzem em múltiplas formas de discriminação e violência (com base no sexo, idade, lugar que ocupam na família, …), atentam de forma desproporcional contra os direitos de meninas, jovens e mulheres ao mesmo tempo que limitam a realização do seu potencial. Falamos de práticas (de pressão/aceitação ‘coletiva’) com impacto directo no reconhecimento, exercício e usofruto do direito à educação, à saúde, à herança e posse dos meios de produção, à participação pública e política, à igualdade e ao desenvolvimento que frequentemente causam danos e sofrimento físico e psicológico.
Entre a longa listagem de Práticas Nefastas (PN), na sua maioria já reconhecidas pela comunidade internacional em diferentes documentos, mecanismos e compromissos, encontramos: Mutilação Genital Feminina; Casamentos ou uniões Infantis, Precoces, Forçadas e ou Combinadas; Interditos de Herança; Tabús alimentares; Compra e venda da noiva; Testes de virgindade; Crimes de honra; Purificação de viúvas; Apedrejamento em praça pública; Queimadura com ácido; Esconder, pressionar, “engomar” dos seios; Preferência pela descendência masculina e/ou filho mais velho...
As práticas nefastas não estão confinadas a um continente, a um determinado grupo étnico ou a praticantes de uma religião; do mesmo modo que a existência em determinados países é resultado de processos migratórios e diferentes diásporas, mas sobretudo do que não fizemos. A Mutilação Genital Feminina (MGF), os Casamentos/Uniões infantis, precoces e forçadas (CIPF), por exemplo, estão presentes em países como Bangladesh, Brasil, Burkina Faso, Colômbia, Etiópia, Ghana, Guiné-Bissau India, Indonésia, Moçambique, Nepal, Niger, Portugal Quénia, Reino Unido, Uganda, Yemen, Zâmbia, entre tantos outros1.
Ao longo da história recente o tema das práticas nefastas aos direitos das meninas e mulheres ganhou protagonismo incluindo nas Agendas de organizações do sistema das Nações Unidas (UNFPA, UNICEF) graças, sobretudo, ao trabalho de advocacy de inúmeros coletivos de mulheres, de direitos humanos e de desenvolvimento . Na Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável, o ODS 5 (Alcançar a Igualdade de Género e Empoderar todas as Meninas e Mulheres), lida a sua visão e metas, na totalidade, é disto exemplo, quando reconhece: “Pôr fim a todas as discriminações sobre as mulheres e raparigas não é apenas uma questão basilar de direitos humanos, é crucial para o desenvolvimento sustentável; está provado que ajuda o crescimento económico e desenvolvimento” (…) e “quando na Meta 5.3. explicita “Eliminar todas as práticas nefastas, tais como o casamento infantil, precoce e forçado e a mutilação genital feminina”.
Ao longo da história recente o tema das práticas nefastas aos direitos das meninas e mulheres ganhou protagonismo (…) graças, sobretudo, ao trabalho de advocacy de inúmeros coletivos de mulheres, de direitos humanos e de desenvolvimento"
Os dados disponíveis referem, no entanto, que o continente africano reúne o maior número de países com a prática de MGF, entre outras PN, daí não seja despiciente lembrar a Agenda 2063 da União Africana (2014) - A África que Nós Queremos (the Africa We Want)2 que apela ao fim da discriminação com base no género, incluindo a MGF, em seguimento de outras iniciativas incluindo o Protocolo de Maputo, 2003, “Protocolo à Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, relativo aos Direitos da Mulher em África”3 onde se lê “ firmemente convencidos que toda a prática que impeça ou ponha em perigo o crescimento normal e afecte o desenvolvimento físico e psicológico das mulheres e das raparigas, deve ser condenada e eliminada” havendo, ainda, artigos específicos como o 5º. Eliminação de Práticas Nocivas e 6º Casamento. Mas também a “Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica”4 a que Portugal está obrigado e bem, também, contexto da coerência das políticas públicas.
Ao longo dos últimos anos assistimos a avanços com a adoção de legislação, de programas e estratégias regionais e nacionais específicas sobre Práticas Nefastas, por muitos países. Ao mesmo tempo assistimos ao reforço da ação, da participação e da visibilidade pública e política de muitas jovens e mulheres “guerreiras” pelo abandono de práticas nefastas em respeito pela autonomia e integridade do seu corpo , em respeito pela igualdade em matéria de todos os direitos humanos em todas as comunidades, que cobram aos estados as promessas adiadas ao mesmo tempo que reivindicam o seu lugar à mesa das negociações e decisões, incluindo em matéria de financiamento. São estas jovens e mulheres, que embora vivendo com as marcas de tradições que magoam e calam, foram capazes de romper barreiras e derrubar obstáculos, são rosto de campanhas, vozes de denúncia e apelo, agentes de desenvolvimento comunitário, autoras de biografias e investigação académica, dirigentes políticas e de organizações da sociedade civil, solidárias e sabem acompanhar e empoderar outras jovens e mulheres.
assistimos ao reforço da ação, da participação e da visibilidade pública e política de muitas jovens e mulheres “guerreiras” pelo abandono de práticas nefastas em respeito pela autonomia e integridade do seu corpo
São muitas destas jovens e mulheres com quem nos cruzamos e trabalhamos no quotidiano, que connosco lembram que chegou o tempo de reforçar, acelerar esforços, realizar as promessas feitas em muitas conferências e documentos de política pública. Faltam 9 anos para concluir a Agenda 2030. A crise financeira e a pandemia fizeram recuar muitas das intervenções que estavam no terreno e em outras tantas situações agravaram os problemas.
Para combater e acabar com as práticas nefastas, os compromissos da proteção social e jurídica, dos direitos universais de acesso à educação e saúde sexual e reprodutiva têm de ser garantidos. Precisamos reforçar a atenção às pessoas reais, ao que significa intersecionalidade, ao sentido de causa e responsabilidade cidadã e alguma sororidade. Precisamos coletivamente que se perceba que quando os direitos humanos estão em risco não há temas sensíveis (cultural ou politicamente) mas sim abordagens (às vezes) corajosas, assentes na verdade das evidências e saberes e, claro está, financiamento… porque a prevenção, a formação, a participação e o empoderamento exigem recursos para custear salários, deslocações, trabalho de terreno, campanhas, materiais para além da água, luz e alimento de todos os dias.
Todos os dias nascem crianças, todos os dias são casadas crianças, todos os dias são mutiladas crianças, todos os dias morrem jovens e mulheres por causas associadas à violência baseada no género, à gravidez e ao parto. Todos os dias há quem afirme que são problemas que temos de enfrentar e resolver, mas todos os dias há quem use os adjectivos “complicado” ou “complexo” para justificar o nada fazer, ao mesmo tempo que se reclama a humanidade partilhada.
Para cumprir o objetivo global de eliminação das práticas nefastas até 2030, devido ao crescimento populacional e à COVID-19, o investimento terá de ser multiplicado por 10. Para que ninguém fique para trás é preciso acelerar a velocidade nas decisões e prioridades técnicas e políticas com financiamento assegurado, empoderar vozes audíveis e da sociedade civil independente. Ou então continuaremos a contar vítimas …é a escolha, que não queremos.
A P&D Factor agradece à Plataforma Portuguesa das ONGD o convite para este artigo ao mesmo tempo que se disponibiliza para a partilha de experiência e saber.
https://popdesenvolvimento.org/
Notas:
2 https://au.int/sites/default/files/documents/36204-doc-agenda2063_popular_version_po.pdf
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de dezembro de 2021 "Igualdade de Género e Desenvolvimento" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.