14 nov 2024 Fonte: Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Cooperação para o Desenvolvimento
Este entrevista foi originalmente publicada na Edição nº 27 (novembro de 2024) da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD: "Um Mundo em Mudança: que espaço para a Cooperação?". Leia ou faça download da Revista aqui.
Entrevista conduzida por Rita Leote, Diretora Executiva da Plataforma, e Tomás Nogueira, Resposável de Advocacy e Comunicação da Plataforma
Vivemos hoje um momento marcado pela incerteza e pelo regresso de tensões geopolíticas que se julgavam ultrapassadas. Ao mesmo tempo, deparamo-nos com a urgência em dar resposta a fenómenos como a crise climática, o agravamento das desigualdades globais e a intensificação das ameaças à democracia. Além de complexos, tem-se tornado cada vez mais evidente que todos estes desafios estão interligados entre si, o que faz com que o debate tenha, em grande medida, de assentar numa discussão sobre a importância da cooperação e da solidariedade internacional. Face ao período que atravessamos, marcado também por mudanças a nível nacional, quais serão as principais prioridades da Cooperação Portuguesa neste novo ciclo político?
A cooperação para o desenvolvimento sustentável é um dos eixos prioritários da política externa portuguesa. Este novo Executivo aposta num Portugal Global e humanista com uma política de cooperação integrada tendo em vista a implementação da Agenda 2030 e dos ODS com especial enfoque nos países prioritários da Cooperação Portuguesa, continuando a priorizar o desenvolvimento humano e sustentável, contribuindo assim para a erradicação da pobreza.
O programa do XXIV Governo Constitucional, na área governativa dos negócios estrangeiros, traça uma visão ambiciosa para responder aos principais desafios no plano internacional e no desenvolvimento sustentável dos países parceiros, conferindo coerência nacional e internacional aos esforços desenvolvidos e reforçando o compromisso político nesta matéria.
A multidimensionalidade dos desafios de desenvolvimento exige, cada vez mais, ações e políticas integradas e abrangentes, como ressaltam os efeitos cumulativos de várias crises interligadas, incluindo as crises climática, da biodiversidade e da sustentabilidade, as ameaças à paz e segurança globais, e a pandemia da doença COVID -19, com efeitos desproporcionais nos países mais frágeis e vulneráveis.
A implementação da ECP 2030 deverá ser assegurada por um modelo robusto de governação, acompanhamento e avaliação, cuja coordenação e liderança cabe ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, conjuntamente com o Camões, I. P.
O atual contexto é igualmente uma oportunidade para reconstruir melhor e de forma mais sustentável, com o reforço da cooperação internacional a tornar-se uma necessidade decorrente de interesses e responsabilidades partilhadas
Dada a exigência da necessidade de acelerar o cumprimento atempado dos compromissos assumidos no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), o atual contexto é igualmente uma oportunidade para reconstruir melhor e de forma mais sustentável, com o reforço da cooperação internacional a tornar-se uma necessidade decorrente de interesses e responsabilidades partilhadas.
Por outro lado, o XXIV Governo Constitucional encontra na Lusofonia o pilar que assegura a singularidade portuguesa e distingue o nosso país dos restantes Estados-membros da UE, devendo, por isso, ser reconhecida como uma dimensão distintiva da nossa política externa. É necessária uma estratégia de valorização do espaço lusófono e de promoção mundial da língua portuguesa.
A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) assume, neste contexto, um papel crucial, promovendo a cooperação, a ajuda ao desenvolvimento e a diplomacia cultural como o meio natural para fortalecer as nossas relações bilaterais, utilizando a Língua como a afirmação de uma identidade coletiva.
Entende, pois, este Governo que é essencial continuar a promover o reconhecimento internacional da língua portuguesa, seja apoiando ativamente a elaboração e implementação de uma estratégia concertada junto da CPLP para que o português seja reconhecido como língua oficial da ONU até 2030, seja promovendo a língua como um veículo eficaz de comunicação global.
A Estratégia da Cooperação Portuguesa 2030, aprovada no final de 2022, assume como prioridade os setores tipicamente associados ao Desenvolvimento Humano, nomeadamente a Educação e Saúde, e olha para a igualdade de género enquanto objetivo transversal a todas as ações da Cooperação Portuguesa. Do ponto de vista do Governo, que desafios é que se colocam atualmente em cada uma destas áreas?
Através da ECP 2030, Portugal reafirma a centralidade da cooperação para o desenvolvimento, reforça a capacidade de intervenção da Cooperação Portuguesa e amplia a qualidade e a eficácia dos programas no terreno, conferindo maior visibilidade às suas intervenções, sem deixar ninguém para trás (LNOB).
As prioridades portuguesas na cooperação para o desenvolvimento estão também alinhadas com os cinco Ps da Agenda – Pessoas, Planeta, Prosperidade, Paz e especialmente Parceria – fundamentais para a concretização dos ODS, mas também com o princípio LNOB, refletido na prioridade dada aos países menos desenvolvidos, Pequenas Ilhas Estados em desenvolvimento, países frágeis e em processo de graduação.
Também os Programas Estratégicos de Cooperação (PEC) desenvolvidos com cada um dos PALOP e TL reafirmam os compromissos internacionais assumidos no âmbito da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, da Agenda de Ação de Adis Abeba, da Agenda 2063 da União Africana, da Parceria Global para a Eficácia do Desenvolvimento e demais instrumentos multilaterais.
Apresento, por isso, alguns números. A marca distintiva da Cooperação Portuguesa centra-se pois na promoção do desenvolvimento humano, onde 62% da nossa APD bruta em 2023 destinou-se ao ODS 1 - erradicação da pobreza, ao combate às desigualdades e à promoção de um desenvolvimento global sustentável, equitativo e inclusivo, através do investimento nas pessoas como fator impulsionador de uma transformação positiva.
Constata-se que o ODS 3 (saúde) absorveu 3% da APD portuguesa, o ODS 4 (educação) 22% da APD, o ODS 8 (trabalho e crescimento económico) 3% da APD, o ODS 13 (combate às alterações climáticas) 0,2% da APD, e o ODS 16 (consolidação da paz e da democracia) 3% da APD, tendo como base transversal a igualdade de género e o empoderamento das mulheres e meninas. O ODS 17 relativo às parcerias atingiu 7% da nossa APD.1
Se é verdade que Portugal continua a desenvolver esforços internacionalmente para poder acompanhar a escala do compromisso político na implementação da Agenda 2030 e dos 17 ODS existe, todavia, ainda um caminho a percorrer na utilização da Agenda 2030 como referencial principal para a coerência e convergência das políticas públicas com o desenvolvimento sustentável.
Os desafios que a atual fase de construção do 'Roteiro Nacional para o Desenvolvimento Sustentável 2030” enfrenta centram-se em quatro áreas: i) consistência e alinhamento entre políticas públicas, ii) engajamento e participação dos stakeholders; iii) elaboração de uma estratégia de comunicação comum sobre os ODS; e iv) sensibilização e capacitação das partes interessadas relevantes.
É este também o contributo da ECP 2030 para o Roteiro ao identificar nos diferentes instrumentos e políticas de planeamento, respostas a estas questões, permitindo analisar o progresso, identificar lacunas e definir ações futuras.
Portugal continua a pugnar, ainda, pela necessidade de esta Agenda e dos ODS assentar numa verdadeira partilha de responsabilidades, entre atores públicos e privados e entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, além da tradicional abordagem Norte-Sul.
É com base nos princípios por nós defendidos de um contínuo ajustamento do sistema das NU aos desafios inerentes à Agenda 2030, em que se reconhece a necessidade de garantir a eficiência e eficácia de um sistema que se deverá basear numa articulada cooperação e complementaridade entre os diferentes atores, explorando as sinergias e interdependências entre as respetivas competências e estratégias, evitando duplicações e procurando maximizar capacidades e impacto.
Há vários anos que Portugal está entre os países da OCDE que menos percentagem do seu rendimento dedicam a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD). Apesar disso, mantém-se o compromisso de dedicar 0,7% do Rendimento Nacional Bruto para APD até 2030. Sabendo que o financiamento para o desenvolvimento é um elemento fundamental para concretizar os Objetivos de Desenvolvimento, qual a estratégia do Governo para aproximar o país da meta com que Portugal se comprometeu internacionalmente?
Para acompanhar a ambição da ECP2030, foi definida uma calendarização de aumento gradual da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD), consubstanciada uma vez mais no reforço de 20M€ adicionais do OE de 2025, tal como no OE 2024, para a Cooperação Portuguesa. A referida verba serve o propósito de dar resposta à necessidade de aumento da capacidade financeira da Cooperação Portuguesa, reforçando também as vertentes da Língua e da Cultura.
Será importante aprofundar a capacidade institucional e organizacional do Camões IP, para a gestão de novas modalidades de cooperação e para a identificação de oportunidades de parceria e financiamento. Desejavelmente, tal deverá implicar a definição de um orçamento plurianual indicativo de cooperação
No entanto, será importante aprofundar a capacidade institucional e organizacional do Camões IP, para a gestão de novas modalidades de cooperação e para a identificação de oportunidades de parceria e financiamento. Desejavelmente, tal deverá implicar a definição de um orçamento plurianual indicativo de cooperação, a definição de metas para apoio orçamental aos países parceiros nas áreas da educação e da saúde, apoiar os atores da cooperação portuguesa a acederem a oportunidades de financiamento disponíveis no quadro do IVDCI – Europa Global, com o aumento do número de projetos implementados, reforçar as capacidades do Banco de Fomento para a plena afirmação enquanto principal braço financeiro da cooperação portuguesa no apoio ao setor privado, e em estreita ligação, com as IFI, para alavancar outras fontes de financiamento, etc.
Com a realização da Cimeira do Futuro convocada pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, e a adoção do Pacto para o Futuro, começa já a desenhar-se o período pós-Agenda 2030. Num momento desafiante para o multilateralismo, que prioridades terá o Governo no âmbito da sua participação no processo de construção do quadro de ação que sucederá aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)?
A Agenda 2030 permanece o principal referencial comum da humanidade, assegurando a transição para sociedades e economias mais sustentáveis, prósperas e inclusivas, garantindo que ninguém é deixado para trás.
Portugal continua comprometido com esta Agenda e com os ODS. É de referir que, após termos apresentado, o ano passado, em Nova Iorque, o nosso segundo Relatório Voluntário Nacional (RVN), encontramo-nos a elaborar o Roteiro Nacional para o Desenvolvimento Sustentável 2030, que propõe quatro objetivos estratégicos:
- Melhorar a atividade de monitorização do progresso face aos ODS, incluindo através da revisão do painel de metas e indicadores;
- Elaborar um Quadro Estratégico para o Desenvolvimento Sustentável;
- Garantir a coerência e o alinhamento das políticas públicas para o desenvolvimento sustentável;
- Aumentar os níveis de apropriação e conhecimento público da Agenda 2030.
Ambos os processos contaram com uma significativa participação e adesão, não só a nível governamental, como também das regiões autónomas e autarquias locais, e da sociedade civil. O contributo coletivo, de atores nacionais e internacionais, é crucial para que sejamos bem-sucedidos.
Portugal continua a ter um lugar pioneiro nestas discussões, pugnando continuamente pela importância da dimensão social na Agenda 2030, na erradicação da pobreza e da fome, mas também na garantia de condições de trabalho dignas, não perdendo de vista a necessidade da transição para um modelo de crescimento económico sustentável, aliado ao combate às alterações climáticas.
Neste ponto de viragem, com diversas crises globais e passado metade do tempo estabelecido para o cumprimento dos ODS, é tempo de redobrar os esforços. É preciso implementar ações efetivas e decisivas, que garantam, no longo prazo, as necessidades das gerações presentes e futuras.
E é, por isso, também importante falarmos agora do pós-Cimeira do Futuro e dos seus resultados (como o Pacto do Futuro e respetivos anexos - a Declaração das Gerações Futuras e o Pacto Global Digital) que são, por um lado, o produto da visão do Secretário-Geral para o futuro do multilateralismo e da cooperação global e, por outro lado, a expressão da vontade dos 193 Estados-Membros das Nações Unidas para responder aos desafios atuais e futuros que a humanidade enfrenta.
Quando em 2021 António Guterres lançou o relatório a “Nossa Agenda Comum” (“Our Common Agenda”), o mundo encontrava-se ainda a recuperar de um dos maiores desafios coletivos da história contemporânea.
Desde então que as Nações Unidas – e a Assembleia Geral, em particular - têm procurado implementar as recomendações do Secretário-Geral (por exemplo, através da criação do Escritório da Juventude e do reconhecimento do direito a um ambiente limpo, saudável e sustentável).
A Cimeira do Futuro constituiu, assim, mais um passo no avanço da implementação dessas recomendações. Constituiu uma oportunidade para renovar a confiança da uma reforma efetiva da governação global.
Portugal esteve plenamente envolvido na preparação da Cimeira desde que a Nossa Agenda Comum foi apresentada. Procurou colaborar com os restantes membros das Nações Unidas para garantir que a Cimeira do Futuro fosse ambiciosa e que o Pacto fosse orientado para a ação, permitindo acelerar a implementação da Agenda 2030 e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável.
Em concreto, no âmbito das discussões sobre a Cimeira, Portugal defendeu que o multilateralismo, um dos pilares da nossa política externa, precisa de se reinventar e de se fortalecer, incluindo através da reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas e da Arquitetura Financeira Internacional.
Depois de vários e desafiantes meses de negociações em Nova Iorque, o texto aprovado da declaração sobre as Gerações Futuras reflete globalmente as prioridades de Portugal, sendo um documento conciso e prospetivo que contém linguagem progressista em matéria de direitos humanos, bem como outros temas imprescindíveis, casos do clima, biodiversidade, paz, desenvolvimento sustentável e Estado de Direito. Quanto aos temas emergentes das últimas décadas como a digitalização, incluindo a IA e a bioengenharia, foram bem acolhidos no Pacto Global Digital, sob a égide dos princípios da equidade e solidariedade, num ambiente inclusivo, justo e aberto que estimule o desenvolvimento tecnológico e científico ao mesmo tempo que encurta o fosso digital.
Procurámos também garantir que outras prioridades próprias do nosso país estivessem refletidas nas ambições do Pacto do Futuro – como sejam o apoio aos jovens, a utilização pacífica do espaço digital e do espaço exterior, a valorização do continente africano e de parcerias estratégicas com a União Africana, os países insulares em desenvolvimento
Em linha com os nossos parceiros da União Europeia, procurámos também garantir que outras prioridades próprias do nosso país estivessem refletidas nas ambições do Pacto do Futuro – como sejam o apoio aos jovens, a utilização pacífica do espaço digital e do espaço exterior, a valorização do continente africano e de parcerias estratégicas com a União Africana, os países insulares em desenvolvimento, o futuro das missões de paz das Nações Unidas ou a proteção e usos sustentável dos oceanos.
A Cimeira foi também um fórum aberto a todos, incluindo representantes da sociedade civil, ONG, representantes da Academia e do setor privado – que, ao longo dos últimos anos, foram alimentando as negociações e contribuindo para um futuro comum, mais verde, mais inclusivo, mais justo e mais pacífico. Sem estes valiosos contributos, os resultados não seriam, certamente, tão encorajadores e abrangentes.
Portugal tem sido vocal e ponderado, ativo e recetivo. As prioridades de 193 países para o futuro do mundo não são – nem poderiam ser – todas sincrónicas. Mas temos objetivos comuns; falamos, com tantos, à mesma voz; enfrentamos desafios semelhantes.
Num mundo dividido, encontrar consenso nas Nações Unidas é uma tarefa difícil. E é, também, por um futuro menos dividido que nos empenhámos nesta Cimeira; agradecendo o compromisso e o trabalho de todos quantos nela se têm empenhado.
Saudamos, assim, a organização desta Conferência por duas razões principais: por um lado, as discussões que se concluíram na Cimeira do Futuro, e que foram traduzidas no Pacto, exigem o contributo essencial dos diferentes quadrantes da sociedade civil, garantindo o caráter inclusivo e transparente do processo. Por outro, a importância da avaliação sobre a implementação da Agenda 2030, no âmbito global, com a apresentação do Relatório de Desenvolvimento Sustentável 2024, que reportando ao ano anterior, foi um momento de revisão central para redobrarmos os esforços futuros para o cumprimento dos ODS. Não poderemos ambicionar decidir o caminho a seguir sem uma avaliação crítica do momento onde nos encontramos.
A Agenda 2030 reúne todos para a ação e apenas com o contributo coletivo tanto de atores nacionais como internacionais poderemos ser bem-sucedidos e, assim, esperar revigorar o sistema multilateral, tornando-o mais resiliente aos riscos e desafios globais, de forma a reconstruir a confiança entre os Estados-membros, bem como com a sociedade civil, fortalecendo a governação global em benefício das gerações presentes e futuras, e garantir o respeito pela Carta das Nações Unidas e pelos direitos humanos.
- Fonte: Camões, IP/GPPE (Dados provisórios, não oficiais, em julho de 2024)