menu

18 nov 2020 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Cooperação para o Desenvolvimento, Setor Privado

Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de outubro de 2020 "Perspetivas para o Futuro da Cooperação Portuguesa". Leia ou faça download da edição completa aqui.

 

Autora: Isabelle Brachet, conselheira principal para a representação na UE, ActionAid International

Muitos países doadores consideram que o setor privado tem um papel essencial na cooperação para o desenvolvimento. Porquê? Porque as atividades empresariais geram empregos e existe a crença de que as empresas irão investir em projetos que contribuam para a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável nos países em desenvolvimento se uma injeção de dinheiro público reduzir o risco financeiro desses projetos para as empresas investidoras. É assim que surge a ideia de “combinar” fundos públicos e privados, ou seja, utilizar fundos públicos, na sua grande maioria destinados à ajuda ao desenvolvimento, para incentivar investimentos privados.

Na Europa, vários países implementaram reformas na cooperação para o desenvolvimento para poderem subsidiar empresas privadas. A um nível regional, o apoio ao setor privado está na primeira linha da abordagem da UE ao desenvolvimento[i], com o Plano de Investimento Externo (PIE) adotado em 2016.[ii] No próximo orçamento da UE, que abrange os anos de 2021 a 2027, espera-se que haja um aumento nos montantes da ajuda ao desenvolvimento reservados para a atribuição de subsídios a empresas privadas.[iii] Com esta mudança, existirão menos fundos disponíveis para outras entidades que operam na área do desenvolvimento, tais como as agências da ONU, organizações da sociedade civil e autoridades locais.

Na Europa, vários países implementaram reformas na cooperação para o desenvolvimento para poderem subsidiar empresas privadas.  

Estas novas modalidades de financiamento regem-se por regulamentações extremamente complexas, sendo assim necessários especialistas financeiros, em vez de especialistas nas áreas dos direitos humanos ou do ambiente. As suas principais preocupações são a rentabilidade dos projetos, os lucros, as taxas de aprovisionamento, os intermediários financeiros, os rácios de capitalização... só depois pensam no direito à alimentação, nos direitos das mulheres, nos direitos dos trabalhadores ou no espaço cívico…

Está a funcionar?

Investigações recentes demonstram que os montantes mobilizados não satisfazem as expectativas.[iv] Ainda pior, a alavancagem de investimentos privados através do subsídio ao setor privado nos países doadores pode ter um impacto negativo no desenvolvimento local do setor privado nos países menos desenvolvidos.[v] Muitas vezes, não existe qualquer evidência do impacto positivo destes investimentos no combate à pobreza e em empregos decentes para as mulheres e para os homens.[vi] Em termos de igualdade de género, por exemplo, 37,5% dos projetos do PIE analisados por avaliadores externos tinham a igualdade de género como um dos seus principais objetivos ou como um objetivo importante. No entanto, a igualdade de género deve ser transversalizada em 85% dos gastos da UE na área do desenvolvimento. Outras preocupações incluem a partilha desadequada de riscos entre os organismos do setor público e as empresas privadas, a falta de transparência e prestação de contas, bem como preocupações em termos de equidade.[vii]  Estas ferramentas financeiras funcionam em conjunto com reformas políticas encorajadoras da UE em países parceiros, que visam criar um “ambiente favorável à atuação das empresas”, mas as reformas necessárias são identificadas com as empresas e sem o envolvimento da sociedade civil.[viii]

Os governos devem regulamentar para assegurar que as empresas privadas cumprem o seu papel

Confiar que os incentivos financeiros são suficientes para assegurar que as empresas agem corretamente (e fornecem bens públicos) não é uma solução sustentável. As empresas devem contribuir para a criação de sociedades mais igualitárias e economias verdes, independentemente de receberem, ou não, ajuda financeira. Para que tal aconteça, os governos têm de adotar um quadro regulamentar que viabilize esta realidade. São necessárias regulamentações a vários níveis, desde uma regulamentação fiscal internacional justa e eficaz (uma vez que os países com baixos rendimentos perdem 200 biliões de dólares por ano devido à elisão fiscal) até leis de diligência prévia que permitam que as vítimas de abusos de direitos humanos cometidos por empresas possam ter acesso a compensações.[ix] Precisamos ainda de uma reforma profunda da governação empresarial para assegurar que o processo de tomada de decisões das empresas está mais alinhado com o bem comum, assim como uma regulamentação financeira robusta que permita direcionar todos os investimentos para causas justas (e responsabilizar as empresas que financiam apropriações ilegais de terras, desflorestação e violações dos direitos humanos).

Precisamos ainda de uma reforma profunda da governação empresarial para assegurar que o processo de tomada de decisões das empresas está mais alinhado com o bem comum

A utilização de uma percentagem cada vez maior da ajuda ao desenvolvimento para fomentar investimentos privados em países em desenvolvimento enquanto estas reformas básicas ainda estão por concretizar pode comportar mais riscos do que benefícios.

As instituições para o financiamento do desenvolvimento devem apoiar modelos de negócio inclusivos e aplicar critérios rigorosos

O apoio público deve concentrar-se em microempresas e em pequenas e médias empresas locais, bem como em modelos de negócio inclusivos (por exemplo, cooperativas e empresas sociais). As empresas inclusivas regem-se por uma missão social e ambiental, integrada nos seus estatutos e com impacto na estrutura de governação. Desta forma, as decisões empresariais concretizam essa missão e estas empresas reinvestem os lucros na economia local, em vez de gerarem dividendos para os acionistas nos países doadores. Este modelo contrasta com os modelos de negócio convencionais que dão prioridade à maximização dos lucros acima de tudo o resto, algo que pode resultar em abusos dos direitos humanos e na exploração ambiental.[x]

O apoio público deve concentrar-se em microempresas e em pequenas e médias empresas locais, bem como em modelos de negócio inclusivos 

A ajuda ao desenvolvimento não deve ser utilizada para promover investimentos privados em serviços públicos, como a saúde e a educação. A privatização dos serviços públicos “resulta muitas vezes na eliminação sistemática das proteções de direitos humanos e numa marginalização ainda maior dos interesses das pessoas com baixos rendimentos e daquelas que vivem na pobreza”.[xi]

Só devem ser apoiadas as atividades que respeitem os direitos humanos e os objetivos ambientais. As empresas que praticam a elisão fiscal devem ser excluídas, assim como aquelas que investem em combustíveis fósseis. O alvo de 85% de paridade de género deve ser satisfeito, a transparência acerca dos beneficiários finais deve estar garantida, o direito de todas as comunidades locais a um consentimento livre, prévio e informado sobre os investimentos relacionados com a terra deve ser garantido e devem existir mecanismos de reclamação eficazes.

Conclusão

A ajuda ao desenvolvimento pode acompanhar da melhor forma a diversificação das economias locais nos países parceiros, ao apoiar modelos de negócio inclusivos, microempresas e pequenas empresas que tragam benefícios sociais e ambientais às sociedades em que operam. Se, em condições extremamente rigorosas, a ajuda é utilizada para promover investimentos privados estrangeiros no Sul Global, tal não deve substituir o apoio orçamental e subsídios diretos, que já provaram ter um impacto positivo na vida das pessoas e no ambiente. Por fim, mas não menos importante, a reforma fiscal global para reduzir a elisão e a evasão fiscais em massa por empresas transnacionais e pela faixa mais rica da população é mais urgente do que nunca: a justiça fiscal deve ser a principal prioridade de qualquer conjunto de políticas de eliminação da pobreza e pode acabar com a dependência da ajuda.[xii]


[i] Comunicação da Comissão Europeia, Reforço do papel do setor privado no crescimento inclusivo e sustentável nos países em desenvolvimento, 2014, https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX%3A52014DC0263&qid=1400681732387&from=EN

[ii] https://ec.europa.eu/eu-external-investment-plan/home_en

[iii] Análise conjunta por 14 ONG, International Development and the next EU Budget: An analysis of the European Commission’s proposals on EFSD and EFSD+ in the revised NDICI and Next Generation EU, 2020, https://actionaid.org/sites/default/files/publications/International%20development%20and%20the%20next%20EU%20budget%20paper_2606.pdf

[iv] ODI, Blended finance in the poorest countries: the need for a better approach, 2019, https://www.odi.org/publications/11303-blended-finance-poorest-countries-need-better-approach

[v] UNCTAD, The Least Developed Countries Report, 2019, https://unctad.org/en/PublicationsLibrary/ldcr2019_en.pdf

[vi] Evaluation of EU blending between 2007 and 2014 (2016), https://ec.europa.eu/international-partnerships/system/files/evaluation-blending-volume1_en.pdf; Comissão Europeia, Implementation report of the EFSD and the EFSD guarantee fund, 2020, https://ec.europa.eu/commission/sites/beta-political/files/efsd-implem_report-external_support_study-final.pdf

[vii] Parlamento Europeu, The use of development funds for de-risking private investment: how effective is it in delivering development  results?, 2020, https://www.europarl.europa.eu/RegData/etudes/STUD/2020/603486/EXPO_STU(2020)603486_EN.pdf

[ix] Comissão Europeia, Study on due diligence requirements through the supply chain, Jan 2020, https://op.europa.eu/en/publication-detail/-/publication/8ba0a8fd-4c83-11ea-b8b7-01aa75ed71a1/language-en, p. 556.

[x] Concord, Rebuilding better with sustainable and inclusive business models, 2020, https://concordeurope.org/resource/rebuilding-better-with-sustainable-and-inclusive-business-models/

[xi] Philip Alston, relator especial da ONU para a pobreza extrema e os direitos humanos, relatório anual de 2018, https://undocs.org/A/73/396

[xii] Philip Alston, relator especial da ONU para a pobreza extrema e os direitos humanos, The parlous state of poverty eradication (advanced unedited version), 2020, https://chrgj.org/wp-content/uploads/2020/07/Alston-Poverty-Report-FINAL.pdf

Tradução por João Oliveira

 

Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de outubro de 2020 "Perspetivas para o Futuro da Cooperação Portuguesa". Leia ou faça download da edição completa aqui.

Acompanhe o nosso Trabalho.

subscrever newsletter