30 nov 2023 Fonte: REVISTA DA PLATAFORMA PORTUGUESA DAS ONGD Temas: Educação para o Desenvolvimento e a Cidadania Global, Economia solidária / alternativa / Microcrédito
Ilustração: Shivani Ranchhod
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de novembro de 2023 "Economia, pessoas e planeta: que alternativas para o bem-estar" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.
Por: FGS | Fundação Gonçalo da Silveira - Este texto foi construído a partir de vários produtos, publicações e estudos da FGS, podem ser consultados aqui.
Um olhar sobre o contexto atual
Ligar “Economia do Bem-estar” a “Casa Comum” é o propósito que nos traz à escrita deste artigo, procurando materializar o que tem sido a reflexão e a ação da FGS - Fundação Gonçalo da Silveira nos últimos anos.
Partindo do intuito deste espaço de diálogo, que pretende discutir o conceito e prática de uma “economia do Bem-estar”, olhando para a origem da palavra “economia” (do grego oikonomía, que significa “gestão da casa”), nada mais adequado do que falarmos precisamente da gestão desta nossa Casa. Uma Casa que identificamos como sendo o nosso planeta, e que à semelhança do que nos foi propondo o Papa Francisco na Encíclica Laudato Sí, se constitui como uma “Casa Comum”.
Ricardo Petrella, durante uma visita a Portugal a convite da FGS, em 2018, perguntou como conseguimos admitir a morte de milhões de crianças por falta de acesso a água? Ou como conseguimos tolerar o desespero de milhões de pessoas, quando se aventuram pelo mar Mediterrâneo, na esperança de encontrar um lugar, uma terra? Como conseguimos permitir isto? Na sua opinião, conseguimos porque as nossas sociedades provocam conflitos sociais entre os excluídos. As “guerras sociais” fazem-se através dos mais desprotegidos, dos mais frágeis, porque “só o mais forte sobreviverá” (Petrella, 2018).
A civilização moderna e industrializada abriu caminho para o ponto de insustentabilidade que hoje vivemos, sendo evidente que o paradigma de progresso atual não é sinónimo de bem-estar para todas e todos. Muito pelo contrário, este “bem-estar” parece estar cada vez mais reservado a uma pequena minoria, que sobrevive à custa da extinção de recursos naturais e da construção de relações de poder, na arena internacional, que reforçam desigualdades extremas.
Tendo em conta esta conjuntura, torna-se imperativo questionar e descobrir caminhos alternativos, que consigam criar espaços para a existência de utopias, transições e experimentações capazes de desafiar as estruturas injustas e insustentáveis que estão na base dos problemas atuais, que ameaçam a vida no seu todo nesta nossa Casa Comum.
A nossa bússola para uma Economia do Bem-estar
Pensar a transformação social, com vista a uma "gestão justa" da Casa Comum, constitui um desafio de grande dimensão, especialmente quando a mundivisão que prevalece é tendencialmente antropocêntrica e utilitarista. Esta conceção tende a potenciar o esquecimento dos nossos limites e da nossa ecodependência (entre pessoas e com a restante natureza), e tende a gerar um esgotamento dos recursos, colocando em causa, a sobrevivência de todo o ecossistema e, portanto, a nossa própria sobrevivência.
Fazendo também eco do trabalho que temos desenvolvido em conjunto com outras pessoas e instituições, é essencial encontrarmos soluções integrais que considerem as diferentes e complexas interações entre os vários sistemas da nossa Casa Comum. A Ecologia Integral constitui por isso uma abordagem que nos pode ajudar no reconhecimento e prática desse caminho e a assumir a relação ecossistémica e integral como chave de leitura e ação da nossa realidade. Relação essa que não é de domínio, imposição ou competição, mas assenta numa ética do cuidado, na cooperação e na reciprocidade. “Nunca é demais insistir que tudo está interligado. O tempo e o espaço não são independentes entre si” (Papa Francisco, 2015, 138). Só com este pressuposto será possível fazer uma justa gestão da Casa Comum. Gestão essa que implica alguns princípios que nos parecem chave:
1) Uma economia do Bem-estar foca-se no Bem comum e na Justiça Social, ou seja, concretiza-se quando a partilha, o acesso, a equidade e o cuidado definem a relação mutuamente integradora entre vida humana e as diferentes formas de vida existentes no planeta.
2) O Bem-estar não tem fronteiras. Assim sendo, deve assentar em valores de Cidadania Global e deve implicar uma gestão da Casa Comum que almeje o bem-estar global (independentemente da geografia), a nível individual e coletivo, no presente e no futuro. Implica, portanto, uma capacidade de articulação entre Estados, territórios e comunidades.
3) A gestão da Casa Comum tem necessariamente de ser coletiva. Como tal, implica o diálogo e a colaboração entre diferentes países com vista ao bem-estar global e não apenas nacional. De um ponto de vista democrático e participativo, ela implica também a participação e ação comunitária, desde o nível local ao internacional, implicando a participação de todas as pessoas.
4) A capacidade de reflexão e pensamento críticos, bem como a compreensão das causas e das consequências das problemáticas atuais a nível global são elementos essenciais para tomar consciência da natureza complexa, multidimensional e interligada da realidade, para o aprofundamento do conhecimento, da reflexão e da ação em relação à utilização dos Bens Comuns e aos seus impactes a nível social, económico, ambiental, etc.
5) Conscientes de que uma economia do Bem-estar está longe de constituir uma realidade, o trabalho desenvolvido com este fim terá necessariamente de passar pela transformação da forma como vivemos em sociedade face ao cenário atual de crescentes desigualdades e injustiça social.
Estes princípios, norteados pelo fio condutor da Ecologia Integral permitem-nos moldar as nossas decisões, porque instigam um sentido de pertença à Casa Comum. Educar para esta nova ética do cuidado com a Casa Comum é, para nós, o grande desafio. (Silveira et al, 2018).
A partir desta âncora educativa para a transformação social, perspetivamos que possam crescer redes de cuidado que sirvam todo o ecossistema planetário. Uma gestão da Casa Comum assente numa economia do Bem-estar que não se encontre sequestrada pela exigência do crescimento económico, mas na qual também a sociedade civil possa pronunciar-se e trazer a sua prática e reflexão. Afinal, trata-se da gestão da nossa Casa Comum. Deixemo-nos desafiar para a gestão desta casa enquanto seus habitantes...