10 dez 2021 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Sociedade Civil, Igualdade de Género, Advocacia Social e Política
Fotografia do Facebook da Miguilan
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de dezembro de 2021 "Igualdade de Género e Desenvolvimento" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.
Nelvina Barreto, Coordenadora- Adjunta da MIGUILAN
A MIGUILAN- MINDJERIS DI GUINE NO LANTA (MULHERES DA GUINE, LEVANTEMO-NOS) é um movimento criado em Agosto de 2015, constituído exclusivamente por mulheres guineenses, que espontaneamente se mobilizaram face aos eventos políticos que levaram ao derrube, pelo Presidente da República, do Governo saído das urnas após as eleições legislativas de 2014.
A criação do movimento foi subscrita inicialmente por 54 mulheres, oriundas de diferentes extratos socio-profissionais. Neste momento, a MIGUILAN conta com 150 membros na Guiné-Bissau e na Diáspora.
Estas mulheres partilham o mesmo sentimento de indignação face ao clima de constante instabilidade, com golpes de estado cíclicos, interrupções frequentes da normalidade governativa e do processo de relance económico do país, conflitos atiçados entre as instituições da República e desrespeito da legalidade constitucional, cometida muitas vezes por instâncias que deveriam ser o garante do seu cumprimento.
A situação histórico-social das mulheres na Guiné-Bissau mostra que não obstante os avanços (…) as disparidades entre os sexos continuam marcantes na nossa sociedade
A consequência é um impacto negativo na vida de todos os que vivem e apostam no país, em particular os jovens e as mulheres, dois grupos particularmente vulneráveis, que se sentem defraudados na sua esperança de ter um país onde possam construir as bases do seu futuro.
A situação histórico-social das mulheres na Guiné-Bissau mostra que não obstante os avanços no domínio da legislação e de se assistir a uma evolução positiva na educação das raparigas, na redução dos casos de práticas nefastas para a saúde das meninas e mulheres, entre outros males; as disparidades entre os sexos continuam marcantes na nossa sociedade. Isso deve-se sobretudo, ao peso dos factores socioeconómicos e culturais e a situação da discriminação familiar que continuam a fazer parte do quotidiano da mulher guineense. A título de exemplo, o último relatório de Desenvolvimento Humano do PNUD mostra que a taxa de escolaridade das raparigas corresponde em média a 1,4 anos enquanto dos rapazes situa-se por volta dos 3,4 anos.
As mulheres continuam a figurar como um grupo particularmente vulnerável quer no que diz respeito ao acesso aos meios de produção, como aos bens, serviços, educação, saúde e formação
Mais de 50% da população da Guiné-Bissau é composta por mulheres, constituindo elas a força motora da economia guineense. As mulheres são as principais agentes económicas do sector primário e secundário, assegurando nomeadamente 55% da produção agrícola na Guiné-Bissau e sendo responsáveis por uma larga fatia da economia não formal, associada a actividades económicas ligadas ao pequeno comércio. Graças aos esforços e às capacidades das mulheres, tem sido possível garantir ao seu agregado familiar, particularmente aos filhos, o acesso a escolarização e alimentação, saúde e vestuário. Segundo o Inquérito Ligeiro para Avaliação da Pobreza II (ILAP II), 23,1% das famílias guineenses são chefiadas por mulheres, elevando-se esse número para 31,2% no Sector Autónomo de Bissau.
Não obstante estes dados, as taxas de pobreza incidem maioritariamente sobre a camada feminina (69,3%). Isso se deve principalmente ao facto de as atividades económicas exercidas por elas apresentarem um menor grau de rentabilidade, devido ao seu baixo nível de escolarização e alfabetização. As mulheres continuam a figurar como um grupo particularmente vulnerável quer no que diz respeito ao acesso aos meios de produção, como aos bens, serviços, educação, saúde e formação.
São as vítimas mais frequentes de violações de direitos humanos; casamento precoce e forçado, violência doméstica, mutilação genital feminina, violência sexual e abusos de todo o género, passando pelo assédio sexual nos locais de trabalho. Os indicadores económicos e sociais demonstram a difícil e por vezes mesmo dramática situação vivida pelas mulheres na Guiné-Bissau.
Apesar do quadro geral ainda ser bastante negativo, um grande esforço tem sido feito pelas organizações da sociedade civil, nomeadamente as redes associativas femininas, nas quais a MIGUILAN tem assumido um papel de destaque, com acções de sensibilização, de formação e de informação à sociedade guineense e aos poderes públicos, em particular aos deputados da Assembleia Nacional Popular.
um grande esforço tem sido feito pelas organizações da sociedade civil, nomeadamente as redes associativas femininas, nas quais a MIGUILAN tem assumido um papel de destaque, com acções de sensibilização, de formação e de informação a sociedade guineense e aos poderes públicos
Graças à mobilização das organizações femininas em torno de uma agenda protectora da integridade física e moral da mulher, assim como da sua participação política, foi possível conseguir a aprovação de leis contra a mutilação genital feminina, a lei contra a violência doméstica, a política nacional para a Equidade e Igualdade de género, a lei da paridade, entre outras. Este processo de reconhecimento dos direitos da mulher, da sua autonomia e emancipação, comumente conhecidas como “empowerment”, traduziu-se na consolidação de alguns ganhos importantes como a lei da paridade aprovada em Dezembro de 2018.
A proposta de Lei da Paridade foi desta forma, elaborada e apresentada à Comissão Especializada para a Mulher e Criança da Assembleia Nacional Popular, por um grupo de organizações femininas, entre as quais a MIGUILAN, liderada pela Plataforma Politica das Mulheres.
Contudo, sabemos que é utópico pensar em alterar a realidade que afecta mais de 50% da população somente com medidas legislativas, temos consciência que será necessária uma profunda transformação da sociedade a todos os níveis ; económico, social e cultural.
Nas zonas rurais, por exemplo, é necessário que elas sejam libertas das tarefas penosas do campo, através de acções praticas que promovam e encorajem o seu acesso à terra e à propriedade, que sejam criados programas de aquisição de máquinas de pilar, de debulhar, de criação de animais de ciclo curto, com o objectivo de aliviar a carga de trabalho a que estão sujeitas e permitir a melhoria das condições de saúde, sanitárias e nutricionais para elas e para as crianças.
Nos centros urbanos, são necessários programas específicos de treinamento de gestão de pequenos negócios, para ajudá-las a reduzir o risco ligado às suas actividades e inseri-las posteriormente no circuito bancário, apoiando-as assim a integrarem o sistema económico formal.
é utópico pensar em alterar a realidade que afecta mais de 50% da população somente com medidas legislativas, temos consciência que será necessária uma profunda transformação da sociedade a todos os níveis
Por todo o Pais, campanhas de comunicação, de informação e de sensibilização nas rádios - principalmente as comunitárias-, nos jornais, nas redes sociais, deverão sustentar e acompanhar estes programas de longa duração (no mínimo 5 anos).
Estas são algumas atividades nas quais a MIGUILAN tem estado implicada, em colaboração e sinergia com outras organizações de mulheres, para favorecer a autonomização da mulher e permitir a sua plena participação na sociedade.
Neste quadro, a MIGUILAN tem-se associado ao Consórcio da Casa de Direitos, na organização anual de uma Roda de Mulheres, com o objectivo de impulsionar debates e reflexões para despertar a consciência geral, mas particularmente da camada feminina, visando contribuir para a transformação estrutural da sociedade guineense, tornando-a portadora de valores democráticos, baseados na justiça social, na igualdade de género e na liberdade de expressão, servindo igualmente de viveiro para a emergência de lideranças femininas.
Numa perspectiva mais global, a MIGUILAN, em parceria com a ACEP, promoveu ainda este ano, em Bissau, um importante encontro de intercâmbio com algumas organizações femininas de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, com ganhos substanciais para a temática da mulher. Nesse encontro foi ressalvada a necessidade de continuarmos a promover a conexão e interação com as mulheres de outros países e de outras realidades (nomeadamente da sub-região africana onde estamos integrados e da CPLP), para aprendermos melhor umas com as outras, para definirmos estratégias globais que possam reforçar os nossos processos que muitas vezes têm um denominador comum: a discriminação, os estereótipos, a violência, os estigmas, as barreiras tradicionais e a falta de oportunidades.
Precisamos pensar juntas para transformar melhor o ambiente hostil que nos rodeia.
Continuaremos a desenvolver um trabalho de informação, de comunicação e sensibilização junto à camada feminina, para educar, formar e despertar a autoestima e consciência da força que representam. Mas a batalha pela igualdade não pode ser ganha sem a participação de ambos os sexos e o envolvimento de toda a sociedade. É uma questão de educação societal e civilizacional que naturalmente levará tempo a ser integrada pela sociedade guineense.
Mas lá chegaremos, estou certa.
Bissau, 22 de Novembro de 2021
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de dezembro de 2021 "Igualdade de Género e Desenvolvimento" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.