menu

13 jun 2022 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Financiamento para o Desenvolvimento, Ajuda Pública ao Desenvolvimento, Setor Privado

Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2022 "Financiar o Desenvolvimento: Compromissos e Desafios" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.
 

Por Nerea Craviotto, Eurodad

Antes de 2014, vários membros do Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) já prestavam apoio a iniciativas orientadas para o setor privado nos países em desenvolvimento, sobretudo através das suas instituições financeiras de desenvolvimento (IFD)1. No entanto, grande parte deste apoio não era elegível para ser reportado como Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) – uma vez que estas operações não cumpririam os critérios básicos2 para serem consideradas como tal. Em resposta a uma narrativa global que coloca o “setor privado" no centro dos esforços de mobilização de recursos e do desenvolvimento, os membros do CAD decidiram incentivar as operações dos doadores de apoio ao setor privado, oferecendo a possibilidade de reportar estas operações como APD.

Na Reunião de Alto Nível de 2016, como parte do processo de modernização da APD, os membros do CAD chegaram a acordo quanto aos princípios que definiam da melhor maneira o esforço dos doadores envolvidos na utilização de instrumentos do setor privado (ISP) na APD, o que abriu as portas para o acordo de 2018 sobre os métodos provisórios de reporte dos ISP. Desde então, as OSC têm suscitado questões fundamentais sobre as profundas repercussões destas discussões na quantidade e qualidade da APD, incluindo a erosão dos critérios fundamentais de concessionalidade da APD.

O que são os Instrumentos
do Setor Privado?

Os ISP são instrumentos de financiamento aos quais os prestadores de APD podem recorrer para fazer investimentos diretos em empresas privadas ou em “veículos de ISP” – tais como instituições financeiras de desenvolvimento (IFD),

em veículos de ISP” – tais como instituições financeiras de desenvolvimento (IFD), fundos de investimento ou outros veículos específicos – que, por sua vez, investem em entidades privadas em países em desenvolvimento. Consistem em empréstimos públicos a entidades do setor privado, investimentos de capital, financiamento “mezzanine”, subvenções reembolsáveis e garantias. Além disso, as contribuições de capital para as IFD são também consideradas como ISP, quer sejam concedidas como subvenções ou investimentos de capital. 
 

investigação anterior da Eurodad oferece uma análise dos acordos e compromissos assumidos pelos membros do CAD em relação à APD através de ISP, às implicações para a APD e às principais questões em jogo. Uma análise mais recente da ajuda ligada indica também que a utilização e reporte de ISP representam sérias ameaças de um aumento da APD ligada e outras formas de APD com motivação comercial, que poderiam afetar a definição de APD, a sua qualidade e disponibilidade.

O que nos dizem os dados disponíveis sobre a APD e os ISP?

Embora os níveis de APD tenham vindo a aumentar nos últimos dois anos, atingindo um máximo histórico de 178,9 mil milhões de dólares em 2021, temos assistido também a uma fatia crescente de APD sob a forma de ISP. De acordo com os últimos dados disponíveis da OCDE, entre 2018 e 2021, a APD reportada como ISP subiu de 2,5 mil milhões de dólares para 3,8 mil milhões, 4 mil milhões e 4,1 mil milhões, respetivamente, representando um aumento de 64% ao longo do período de quatro anos.3 Nestes quatro anos, foi reportado um total de 60% de APD através de ISP no âmbito da abordagem instrumental, que avalia cada transação ISP entre a IFD e a empresa ou instituição privada no país parceiro. O restante (40%) foi reportado ao abrigo da abordagem institucional, que mede a transferência de fundos elegíveis como APD para uma IFD, ou outros veículos, tais como fundos de investimento.

Infelizmente, nem a abordagem instrumental nem a institucional informam o público sobre o impacto que a ajuda canalizada através dos ISP está a ter no combate à pobreza e às desigualdades ou no cumprimento dos ODS. Ambas são igualmente limitadas na informação que fornecem sobre a adicionalidade4, nomeadamente para os recursos da APD reportados no âmbito da abordagem institucional.

A distribuição da APD através de ISP por geografias e setores ilustra que este financiamento visa tanto os países como os setores mais rentáveis. Nos casos em que as informações sobre os países beneficiários estão disponíveis — tal acontece principalmente no caso dos dados comunicados no âmbito da abordagem instrumental — notamos que, de 2018 a 2020, uma média de 52% da APD através de ISP foi atribuída aos países de rendimento médio-alto, principalmente Turquia, Sérvia, Brasil e África do Sul, contra uma média de 3,5% para os países menos desenvolvidos, principalmente Camboja, Tanzânia, Somália e Etiópia.6 No que se refere aos setores, entre 2018 e 2020, a grande maioria da APD através de ISP destinou-se ao setor bancário e financeiro (uma média de 42%, ao setor industrial, mineiro e da construção (média de 16%) e ao setor energético (média de 15%). 

A informação disponível sobre a adicionalidade da APD através de ISP é limitada, mas esta é uma tendência preocupante, considerando que, no futuro, a adicionalidade poderá substituir o critério de concessionalidade7 da APD no contexto dos ISP. A análise dos dados disponíveis mostra uma melhoria no reporte da adicionalidade desde 2018, altura em que apenas uma pequena parte do total da APD através de ISP (5,5%) incluía algum nível de informação. Em 2020, os dados sobem para 61% do total da APD através de ISP. No entanto, na maioria dos casos, a informação continua a ser limitada e não suficientemente específica para permitir uma avaliação externa adequada. A falta de evidências sobre as razões pelas quais a despesa da APD através de ISP é uma boa utilização da APD torna mais difícil responsabilizar os membros do CAD, conduzindo eventualmente ao desperdício de recursos já de si escassos. 

Está na hora de o CAD defender uma ajuda de qualidade que chegue aos mais pobres

A atual revisão do acordo ISP de 2018 oferece aos membros do CAD uma oportunidade de defender o caráter concessional da APD, mesmo que isso limite a medida em que os ISP possam ser elegíveis como APD. Insistir no carácter concessional da APD é, antes de mais, uma questão de princípio, crucial para proteger a natureza distintiva da APD. Além disso, a expansão dos limites da APD poderia potencialmente desviá-la de onde é mais necessária.  

Os membros do CAD devem também assegurar que a APD através de ISP cumpre critérios rigorosos e normas de reporte, bem como mecanismos eficazes de responsabilização. A inclusão dos ISP nas estatísticas da APD sem regras adequadas corre o risco de minar a integridade e credibilidade das estatísticas da APD. Entretanto, na ausência de clareza sobre as regras que regem a APD através de ISP e de salvaguardas, há fortes razões para considerar os ISP como Outros Apoios Públicos8 em vez de APD. 

A APD é um recurso vital e deve visar os países e povos mais necessitados para ter um impacto duradouro na redução da pobreza e das desigualdades, e contribuir efetivamente para realizar os ODS. Chegou o momento de os membros do CAD assegurarem que a APD é canalizada através dos melhores instrumentos e mecanismos possíveis para garantir que o progresso das pessoas mais vulneráveis e marginalizadas permanece no centro das suas dotações de APD. Os Instrumentos do Setor Privado não são, manifestamente, a resposta.  

 

1  As IFD são instituições controladas pelos governos que investem em projetos do setor privado em países do hemisfério sul. Para mais informações sobre o papel das IFD: Romero, M.J. and Van de Poel, J. (2014). Private finance for development unravelled (p.8). Eurodad: Bélgica. Ligação: https://www.eurodad.org/private_finance_for_development_unravelled. 
2  Até 2017, o CAD definiu a APD como "os fluxos para países e territórios da Lista de Beneficiários APD do CAD e para instituições multilaterais que são: i) disponibilizados por agências oficiais, incluindo governos e autoridades locais, ou pelas suas agências executivas; e ii) em que cada transação: a) é gerida tendo como principal objetivo a promoção do desenvolvimento económico e do bem-estar dos países em desenvolvimento; e b) tem um caráter concessional e comporta um elemento de subvenção de pelo menos 25% (calculado a uma taxa de desconto de 10%). A partir de 2018, os limiares do elemento de subvenção foram alterados. Ver mais informações aqui: https://www.oecd.org/dac/financing-sustainable-development/development-finance-standards/officialdevelopmentassistancedefinitionandcoverage.htm#ODA2017.
3   Fonte: Estatísticas de desenvolvimento da OCDE: https://stats.oecd.org/, quadro DAC1. Os dados para 2021 são baseados em valores preliminares da APD de 2021.
4  As regras definem a adicionalidade de acordo com três dimensões (financeira, de valor e do desenvolvimento). Para ser adicional, uma transação pública deve satisfazer a adicionalidade financeira ou de valor, combinada com a adicionalidade de desenvolvimento. Para mais explicações sobre a adicionalidade, consultar o relatório da Eurodad "Time for action: How private sector instruments are undermining aid budgets", na ligação: https://www.eurodad.org/time_for_action. 
5  Entre 2018 e 2020, em média 57% da APD através de ISP (dados CRS / USD deflacionados) não reporta a distribuição geográfica dos recursos mobilizados. Fonte: Estatísticas de desenvolvimento da OCDE: https://stats.oecd.org/.  
6  Calculado com base no total de APD através de ISP (dados CRS / USD deflacionados), para o período 2018-2020. Fonte: Estatísticas de desenvolvimento da OCDE: https://stats.oecd.org/.   
7 Sendo a concessionalidade a suavidade de um crédito, utilizada pelo CAD para traduzir o benefício para o mutuário em comparação com um empréstimo à taxa de mercado.
8  Uma definição de Outros Apoios Públicos pode ser encontrada aqui: https://data.oecd.org/drf/other-official-flows-oof.htm. 


 

 

Acompanhe o nosso Trabalho.

subscrever newsletter