21 jul 2020 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Agenda 2030, Objetivos de Desenvolvimento Sustentável

Este artigo foi originalmente publicado na Edição Especial da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2020 "A Pandemia de Covi-19 e os Desafios do Desenvolvimento". Leia ou faça download da edição completa aqui.
Autora: Patrícia Magalhães Ferreia, Investigadora e Consultora independente na área do Desenvolvimento e Cooperação
Os efeitos da pandemia no desenvolvimento global e na realização da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável são inevitavelmente duros e preocupantes, pelo menos a curto e médio prazo. Entre o momento em que foram aprovados os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), em setembro de 2015, e meados de 2020 há uma diferença abismal e generalizada nas perceções (do entusiasmo à apreensão), nos factos (com os números a revelarem impactos devastadores) e nas perspetivas para o futuro (da confiança moderada à total incerteza).
Os países e os setores da sociedade mais pobres e vulneráveis são afetados de forma desproporcional, como o são em todas as crises. O embate é sentido com especial gravidade nos países mais pobres e, em todos os países, pelas pessoas com condições de vida mais frágeis, com menores e mais precárias fontes de rendimento, que residem em zonas mais pobres ou degradadas, que pertencem grupos sociais discriminados ou em risco de exclusão social1. Mas apesar dos diferentes graus e intensidade, a cadeia de efeitos afeta todos em todos os lugares, não só pela crescente interdependência mas porque a maioria desses impactos não radica em motivos de curto prazo ou em razões superficiais, mas sim em deficiências estruturais que os modelos de organização social e económica, que fomos construindo e reforçando, apresentam.
Em muitos aspetos, a pandemia é um acelerador, vindo agravar tendências já existentes e constituindo uma chamada de atenção abrupta para a realidade em curso, ou para a necessidade de inverter o rumo. Ao contrário da evolução positiva até 2015, o número de pessoas no mundo com fome tem subido anualmente desde 2016 (ODS 2)2. Os níveis de violência contra as mulheres e raparigas continua a registar números alarmantes, estimando-se que 1 em cada 3 mulheres seja vítima de violência física ou sexual durante a sua vida (ODS 5)3. Há muito que se sabe da enorme fragilidade dos sistemas de saúde em muitos países em desenvolvimento, com a escassez de equipamentos, de acesso a medicamentos e outras condições imprescindíveis (p.ex. energia, saneamento), ou de recursos humanos qualificados (ODS 3)4.
Em muitos aspetos, a pandemia é um acelerador, vindo agravar tendências já existentes e constituindo uma chamada de atenção abrupta para a realidade em curso, ou para a necessidade de inverter o rumo
Sabemos também, há bastante tempo, os efeitos (e enormes custos sociais, económicos e ambientais) da poluição, da emissão de gases nocivos, da perda de biodiversidade, da desertificação e desflorestação, provocados pela aceleração de um modelo de crescimento, de produção e consumo que promovemos há décadas (ODS 12, 13, 14 e 15). E há muito que se debatem as assimetrias da globalização, a injustiça social e o aumento das desigualdades, principalmente dentro dos países, com setores da população e serem claramente “deixados para trás” (ODS 10).
A intensificação das crises humanitárias era já uma realidade antes da pandemia, algumas resultantes de uma conflitualidade persistente (Iémen, R.D.Congo, Sudão e Sudão do Sul, Afeganistão), outras agravadas pelo aumento da movimentação de pessoas em fuga de situações de guerra ou de situações de pobreza extrema. O crescimento da securitização e do autoritarismo, a ameaça às democracias liberais e ao multilateralismo, incluindo uma restrição evidente do espaço de atuação da sociedade civil em muitos países, são também tendências emergentes há alguns anos (ODS 16)5.
Assim, no início de 2020, as perspetivas sobre o cumprimento de muitas das metas estabelecidas nos ODS era já pouco animadora6. Nesse sentido, a pandemia será, para alguns, a desculpa que precisavam para justificar o não cumprimento de compromissos internacionais, ou para impor mais medidas restritivas das liberdades individuais e coletivas no plano interno. Para outros, poderá ser motivo para não fazer reformas ou alterações de fundo, visto ser necessário responder ao que é mais urgente, com enfoque apenas no curto-prazo. Tal poderá, igualmente, vir a ter impacto nos fundos de desenvolvimento, agora afetados a prioridades consideradas mais prementes7.
Assim, no início de 2020, as perspetivas sobre o cumprimento de muitas das metas estabelecidas nos ODS era já pouco animadora. Nesse sentido, a pandemia será, para alguns, a desculpa que precisavam para justificar o não cumprimento de compromissos internacionais
Por outro lado, a pandemia, ao ser uma lente que retira o véu de realidades pré-existentes e coloca a nu as fragilidades do modelo predominante, também nos faz questionar políticas, medidas e respostas. As questões do desenvolvimento, da pobreza, dos direitos humanos e da preservação do ambiente estão, mais do que nunca, na discussão pública e no plano mediático – e isso pode ser um sinal de esperança, pela força que a mobilização da opinião pública e o crescimento dos movimentos sociais pode ter (como temos visto com a questão climática, ou com os movimentos pró-democracia).
Outro elemento a ter em conta é que a necessidade geral de foco no essencial significará um aumento de importância do setor da saúde, com as questões da saúde pública, das políticas de saúde, do acesso e investimento na saúde, ou da investigação nesta área a aumentarem de importância nas agendas nacionais e internacionais, o que é fundamental para os processos de desenvolvimento (ODS 3, em ligação com vários outros objetivos). Por outro lado, as questões ambientais podem crescer em importância, com a possibilidade real de aceleração da transição energética, implementação de políticas mais eficazes de combate à degradação ambiental e às alterações climáticas, e crescimento exponencial da “economia verde” e dos empregos associados (ODS 13, 14, 15). Na realidade, se a curto prazo a pandemia tem tido efeitos positivos nos objetivos globais ligados ao ambiente e ao clima (devido ao encerramento de muitas atividades económicas e da limitação de movimentos), estes serão apenas temporários se o enfoque estiver na retoma do crescimento e investimento o mais depressa possível, seguindo os padrões anteriores. Na Europa, algumas respostas à crise podem apresentar sinais encorajadores nesta área, com a Comissão Europeia a afirmar que a retoma terá de se basear no Pacto Ecológico Europeu e Angela Merkel a apelar a que a comunidade internacional crie programas de reconstrução seguindo critérios ambientais e climáticos, combinando ecologia e economia, para responder simultaneamente a duas crises e assim alcançar a Agenda 20308.
A História ensinou-nos que onde existe um problema, existe uma oportunidade – e as crises são, ou devem ser também, momentos de aprendizagem. Nesse sentido, este momento histórico pode ser o patamar para o relançamento de um modelo economicamente mais justo, socialmente mais inclusivo, ambientalmente mais sustentável. As características dos problemas que enfrentamos alertam para a necessidade e urgência de respostas globais assentes na cooperação e colaboração, através de parcerias inovadoras e efetivas, bem como no reforço das capacidades coletivas de atuação. Mais do que nunca, é preciso repensar as formas de agir e investir no reforço das tendências positivas. A gestão comum dos bens globais, por exemplo, é uma das questões onde mais espaço e oportunidade para avançar e transformar. E a declaração de uma Década de Ação para o Desenvolvimento Sustentável (2020-2030) apela exatamente à aceleração dos esforços para implementar soluções mais sustentáveis e transformadoras aos grandes desafios do nosso tempo9.
A História ensinou-nos que onde existe um problema, existe uma oportunidade – e as crises são, ou devem ser também, momentos de aprendizagem. Nesse sentido, este momento histórico pode ser o patamar para o relançamento de um modelo economicamente mais justo, socialmente mais inclusivo, ambientalmente mais sustentável
A Agenda 2030 constitui um enquadramento global, aprovado pela quase totalidade dos países no mundo, que fornece uma abordagem multidimensional, integrada e abrangente para o desenvolvimento. O roteiro está estabelecido desde 2015, incentivando a participação de todos os intervenientes (públicos, privados, da sociedade civil), em todos os países, segundo responsabilidades partilhadas e diferenciadas. Não define as medidas ou políticas para lá chegar - que naturalmente dependem dos níveis de desenvolvimento e das realidades e contextos nacionais e regionais - mas estabelece claramente o que o mundo pretende atingir e qual o rumo a seguir. Nesse sentido, a Agenda pode (e deve) servir de base e de guia para os pacotes de recuperação económica e social durante e após a pandemia, promovendo assim políticas mais sustentáveis que respondam simultaneamente às aspirações legítimas das pessoas a uma vida digna e à preservação do planeta que habitamos. Para isso, a existência de lideranças inspiradoras e empenhadas em incentivar mudanças viáveis e sistémicas será um ponto fulcral nos próximos tempos.
A Agenda pode (e deve) servir de base e de guia para os pacotes de recuperação económica e social durante e após a pandemia, promovendo assim políticas mais sustentáveis que respondam simultaneamente às aspirações legítimas das pessoas a uma vida digna e à preservação do planeta que habitamos.
Pergunta José Tolentino Mendonça: “O processo gerado pelo vírus acelerará apenas as assimetrias e os egoísmos do Velho Mundo, ou motivou-nos a compreender que estamos no mesmo barco e que só há futuro na cooperação e na implementação de outros modelos de existência coletiva?”10. A resposta arrisca ser mista, ou seja, ambas as tendências persistirão e coexistirão, como antes, mas a diferença é que agora foi-nos dada uma oportunidade, nova e concreta, de romper padrões que já não nos servem e construir novos caminhos.
Notas:
[1] Ver, por exemplo, Covid-19: Pandemia pode deixar mais de 500 milhões de pessoas na pobreza, Público, 09.04.2020; e ILO: As job losses escalate, nearly half of global workforce at risk of losing livelihoods, OIT, 29.04.2020.
[2] Dados do relatório anual da FAO “O estado da segurança alimentar e da nutrição no mundo”; Nações Unidas: em 2019, calcula-se que 820 milhões de pessoas em todo o mundo não tiveram acesso suficiente a alimentos.
[3] A isto acresce que quase 750 milhões de mulheres e raparigas casa antes de atingir 18 anos e que pelo menos 200 milhões já foram vítimas de mutilação genital feminina, que continua a ser praticada em cerca de 30 países. Dados das Nações Unidas: www.un.org/en/events/endviolenceday/
[4] Ver dados sobre as desigualdades mundiais na saúde em ourworldindata.org/health-inequality e infografias das Organização Mundial de Saúde sobre o ODS 3: www.who.int/sdg/infographics/en/
[5] Pela primeira vez, em 2019, o número de pessoas que vive regimes autocráticos ou ditatoriais ultrapassou o de regimes democráticos. “Autocratization Surges–Resistance Grows”, Democracy Report 2020, V-Dem Institute, abril de 2020.
[6] Segundo a ONU, em 2019, nenhum país do mundo estava numa trajetória que lhe permitisse de cumprir todos os ODS até 2030. Sustainable Development Report 2019, Bertelsmann Stiftung e Sustainable Development Solutions Network (SDSN).
[7] Como, aliás, já aconteceu recentemente com a questão das migrações. Para um debate sobre o financiamento do desenvolvimento em tempos de pandemia, ver Amy Lieberman, “A look at how UN development funds are recalibrating SDG funding”, DEVEX, 28.04.2020.
[8] “EU says green finance will be 'key focus' of post-virus recovery phase”, Edie, 09.04.2020; “Merkel pede reconstrução pós-crise que combine ecologia e economia”, Observador, 28.04.2020.
[9] www.un.org/sustainabledevelopment/decade-of-action/
[10] José Tolentino Mendonça, “10 perguntas para o pós-covid-19”, Expresso, 18.04.2020.

Este artigo foi originalmente publicado na Edição Especial da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2020 "A Pandemia de Covi-19 e os Desafios do Desenvolvimento". Leia ou faça download da edição completa aqui.