28 nov 2023 Fonte: REVISTA DA PLATAFORMA PORTUGUESA DAS ONGD Temas: Advocacia Social e Política, Economia solidária / alternativa / Microcrédito
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de novembro de 2023 "Economia, pessoas e planeta: que alternativas para o bem-estar" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.
Por: Ritu Verma - Professora Adjunta da Universidade de Carleton, Professora Associada da Faculdade de Estudos Linguísticos e Culturais – Universidade Real do Butão
O nosso planeta está em chamas. Numa situação de enorme perigo causado pela destruição ecológica, as pessoas estão a sofrer, sendo os/as mais vulneráveis os/as que mais sofrem. Esta foi a mensagem do Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, num discurso recente. De facto, numa altura em que o planeta se debate com uma emergência climática, com um colapso ecológico em massa e com a violação de limites planetários críticos, a humanidade encontra-se numa encruzilhada.
Podemos situar claramente as raízes destes problemas prementes e urgentes num sistema económico global danificado e disfuncional, baseado num crescimento contínuo do PIB (Produto Interno Bruto). No quadro de uma definição muito restrita do que conta como sendo "produtivo", o PIB externaliza de forma problemática os custos ambientais, socioculturais e laborais, tais como o trabalho não remunerado das mulheres. Este facto provocou uma enorme destruição ambiental e ecológica, bem como injustiças sociais.
Se imaginarmos o PIB como uma calculadora, torna-se evidente que só tem um enorme botão de "somar". Isto significa que continua a adicionar transações de mercado. Mas falta o botão de "subtrair", pelo que não subtrai as emissões de carbono, nem a poluição ambiental, ou a perda de biodiversidade e o desaparecimento de outras espécies da face do planeta, nem a perda de conhecimentos indígenas, nem a perda de valores comunitários, nem ainda o custo não reconhecido e subvalorizado do trabalho não remunerado das mulheres. Isto significa, por exemplo, que quando há um derrame de petróleo de grandes dimensões, o PIB acaba por aumentar. O PIB não tem forma de contabilizar a trágica destruição ambiental, a perda de biodiversidade ou a perda de comunidades e meios de subsistência das pessoas durante muitos anos após uma catástrofe.
No entanto, esta é apenas uma parte da história. Se quisermos realmente compreender a causa mais profunda e primordial do problema, temos de recuar mais na história, até 1934, quando o PIB foi inventado por Simon Kuznets, pouco antes da Segunda Guerra Mundial e do colapso das estruturas formais do poder colonial. Mais tarde, Kuznets tornou-se um forte crítico da sua própria invenção. Apesar da sua advertência de que este indicador não se destinava a medir o bem-estar de uma nação, o mundo continua, no entanto, a ser condicionado pela ideia de um crescimento contínuo e insustentável.
Como o PIB se baseia no crescimento a todo o custo, descura um problema fundamental: não assume, nem pode assumir, os custos históricos. Ao focar-se nos números, esconde as histórias coloniais do passado, baseadas na extração e exploração de recursos do Sul Global para o Norte Global – que hoje prosseguem inexoravelmente sob diferentes relações neocoloniais de poder. Isto não é surpreendente, dado que o próprio PIB é uma construção colonial (e patriarcal). O mais revelador é o facto de ter sido inventado no Norte Global e não ter em conta os valores, os conceitos ou as filosofias do Sul Global (a maior parte do mundo), nem o trabalho inestimável de mais de metade da população mundial: as mulheres de ambos os hemisférios.
Como um vírus que se infiltrou em todos os cantos do mundo, o capitalismo centrado no PIB continua a captar recursos e a extraí-los para o Norte Global, ou para as mãos de algumas elites ultra-ricas – aquilo a que a Oxfam chamou a "variante bilionária". Desta forma, o PIB tem aprisionado os cantos mais longínquos do mundo no Sul Global em padrões de dependência de dinheiro, desenvolvimento insustentável, dívida debilitante, destruição ambiental e apropriação de terras e recursos. Isto é trágico, porque estes mesmos locais possuem conhecimentos indígenas valiosos sobre a utilização sustentável do ambiente e modos de bem-estar a longo prazo – um assunto a que voltaremos mais adiante. De facto, quando comparamos a "ajuda ao desenvolvimento" do Norte Global ao Sul Global, vemos que é uma gota de água em relação à quantidade de recursos e de trabalho que é apropriada e extraída do Sul Global para o Norte Global. Como salienta o antropólogo económico Jason Hickel, trata-se de recursos e mão-de-obra que poderiam ter sido utilizados de outra forma para melhorar as capacidades produtivas no Sul Global.
Para além disso, temos de nos perguntar por que razão permitimos que especialistas em noções estritas e convencionais de economia clássica e do desenvolvimento, baseados nas torres de marfim do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional, ditem a forma como o mundo está dividido? Segundo eles, com base no nível do PIB per capita, os países individuais são classificados como países de rendimento elevado, países de rendimento médio ou países menos avançados. Isto cria um modelo linear de desenvolvimento "catch-up", de constante obtenção de mais, cujo prémio final são níveis insustentáveis de consumo de massas, materialismo e lucro nas mãos de poucos.
Aqui, a noção de bem-estar torna-se central. A investigação mostra-nos que o dinheiro (ou o rendimento) não conduz à felicidade a longo prazo. Isto é algo que as comunidades indígenas do Sul Global sabem há vários séculos. De acordo com a filosofia budista, temos de considerar a diferenciação entre os nossos desejos e as nossas necessidades ou, por outras palavras, entre a felicidade e o bem-estar. A felicidade tem a ver com estados de espírito curtos e fugazes. Os nossos desejos insaciáveis são algo de que o crescimento do PIB se alimenta – por exemplo, quando compramos umas sapatilhas de marca novas, ficamos felizes por um breve período de tempo e, quando elas se sujam, esquecemo-nos da novidade e pensamos na próxima compra que nos fará "felizes". Assim, os ciclos de consumo destrutivo em massa continuam e não nos conduzem a uma sensação de felicidade significativa. Por outro lado, o bem-estar centra-se em algo mais profundo. Quando falamos de bem-estar, estamos a referir-nos a uma sensação mais longa de contentamento duradouro.
Há já algum tempo que as mulheres e os homens do Sul Global têm vindo a refletir sobre a forma como o sistema económico global não está a funcionar. Graças a uma sabedoria milenar, possuem os conhecimentos, filosofias, cosmologias indígenas e medidas e índices de bem-estar alternativos para impulsionar a agenda que visa ultrapassar o paradigma do crescimento predatório. Os exemplos são muitos: Felicidade Nacional Bruta, Ubuntu, Buen Vivir, para citar alguns. Estes conceitos devem estar no centro das discussões, dos debates e dos movimentos centrados no decrescimento, no pós-crescimento e no ativismo climático – e na visão de um mundo menos turbulento e mais compassivo.
Se quisermos avançar para uma economia do bem-estar e para um desenvolvimento holístico baseado num sentimento mais profundo de satisfação e de bem-estar planetário, temos de pensar na interdependência. Todos/as nós, o Norte Global, o Sul Global e aqueles/as que estão para além do humano: todos os seres sensíveis que habitam este precioso planeta – estamos todos/as interligados/as de formas fundamentais. O Norte Global tem muito a aprender com o Sul Global sobre a forma como podemos interagir com a natureza e como podemos respeitar a natureza (os rios, florestas, montanhas e outros sistemas ecológicos), incluindo conceder-lhes os mesmos direitos legais que os seres humanos possuem. Isto ajudará a proteger as gerações futuras, cuja sobrevivência depende da natureza, nos próximos séculos. Como vivemos num mundo interligado, temos de ir para além do crescimento de forma solidária, agindo com compaixão, bondade e sabedoria uns para com os outros e para com os que estão para além do humano. É a única esperança que temos: unirmo-nos para salvar e preservar a vida num planeta em chamas – e para garantir que vivemos vidas plenas num planeta próspero.
Ver o manifesto para uma economia europeia pós-crescimento intergeracionalmente justa, resultante da Conferência Beyond Growth (Para Além do Crescimento), sob iniciativa do Parlamento Europeu, em maio de 2023.