14 nov 2024 Fonte: Maite Serrano Temas: Cooperação para o Desenvolvimento, Igualdade de Género
Este artigo foi originalmente publicado na Edição nº 27 (novembro de 2024) da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD: "Um Mundo em Mudança: que espaço para a Cooperação?". Leia ou faça download da Revista aqui.
Por Maite Serrano, Diretora da Coordinadora de Organizaciones para el Desarrollo (Espanha)
Num planeta em convulsão, onde a pobreza de milhares de milhões de pessoas (a maioria delas mulheres) contrasta com a crescente acumulação de riqueza por um número reduzido de pessoas; onde as violências se concentram contra mulheres, meninas, adolescentes e pessoas em situação de vulnerabilidade; onde o ecossistema que habitamos enfrenta, entre outras, as ameaças da emergência climática, da perda de biodiversidade, da desflorestação e da escassez de água doce...; e onde parece que as guerras querem substituir o diálogo e a cooperação, a política externa feminista surge como uma abordagem inovadora que pode contribuir para impulsionar as transformações necessárias para promover a justiça global.
Desde que, em 2014, a Suécia1 adotou uma política externa feminista, quinze países (Canadá, Luxemburgo, França, México, Alemanha, Escócia, Espanha, Líbia, Colômbia, Países Baixos, Chile, Libéria, Mongólia, Argentina e Eslovénia) e um governo autónomo (da Catalunha) assumiram compromissos no sentido de integrar a abordagem feminista no desenho e na implementação da política externa e de cooperação internacional para o desenvolvimento. Este impulso foi acompanhado pela criação de um fórum de alto nível da política externa feminista, para a promover a nível global.
Na maioria dos casos, a aplicação desta abordagem na política externa e de cooperação para o desenvolvimento traduz-se num reforço da abordagem de género tradicional e da participação das mulheres, sem que isso signifique um questionamento das estruturas de poder
No entanto, na maioria dos casos, a aplicação desta abordagem na política externa e de cooperação para o desenvolvimento traduz-se num reforço da abordagem de género tradicional e da participação das mulheres, sem que isso signifique um questionamento das estruturas de poder nem dos conceitos tradicionais de segurança e interesse nacional que inspiram as chamadas políticas duras (gestão de fronteiras, segurança, comércio...)2, especialmente as que têm impacto transfronteiriço e noutros países. Por outras palavras, iniciou-se um diálogo relevante para a implementação de políticas feministas transformadoras, mas ainda há muito caminho a percorrer para que sejam implementadas a partir de uma abordagem de coerência de políticas abrangente.
Um avanço relevante neste sentido é a aposta da Alemanha na política de desenvolvimento feminista, que parte da premissa de que a abordagem de género transformadora e interseccional implica enfrentar a estrutura de poder patriarcal que prevalece há séculos a nível mundial
Um avanço relevante neste sentido é a aposta da Alemanha na política de desenvolvimento feminista, que parte da premissa de que a abordagem de género transformadora e interseccional implica enfrentar a estrutura de poder patriarcal que prevalece há séculos a nível mundial, reconhecer a herança colonial e racista que impregna as políticas de cooperação e apostar em mudanças sistémicas para alcançar a igualdade, a liberdade e os direitos humanos.
Embora, na prática, a política externa e de cooperação feminista tenha diferentes interpretações, Ana Güezmes García e Brianda Romero Castelán (Cepal 2023)3 propõem uma definição teórica que clarifica o alcance que essas políticas deveriam ter. “As políticas externas feministas e as políticas de cooperação internacional para o desenvolvimento feministas são políticas transformadoras dos sistemas, estruturas e padrões patriarcais da política internacional; baseiam-se nos direitos humanos, integram a perspetiva de igualdade de género e a interseccionalidade. Além disso, orientam-se para um futuro comum de desenvolvimento inclusivo e sustentável, com igualdade substancial, com a autonomia das mulheres no centro das transformações, a garantia do direito à paz das gerações atuais e futuras, e o avanço decidido para uma sociedade do cuidado que coloca no centro a sustentabilidade da vida e do planeta”.
Uma política externa e de cooperação feminista atua a partir do pensamento crítico sobre as nossas sociedades capitalistas, patriarcais, androcêntricas, coloniais e racistas, para as transformar em direção à igualdade, melhorando a vida não só das mulheres, mas de toda a sociedade
Ou seja, uma política externa e de cooperação feminista atua a partir do pensamento crítico sobre as nossas sociedades capitalistas, patriarcais, androcêntricas, coloniais e racistas, para as transformar em direção à igualdade, melhorando a vida não só das mulheres, mas de toda a sociedade.
Mas, para alcançar essas mudanças, é necessário compreender que incorporar as abordagens feministas vai além da tradicional transversalização da perspetiva de género. Implica trocar as "lentes roxas" — a perspetiva de género — por "lentes progressivas" — uma perspetiva feminista que permita reconhecer a multidimensionalidade e as interseccionalidades na diversidade de categorias de discriminação através de uma análise de classe e raça, com uma abordagem decolonial e antirracista (género, idade, etnia, raça, religião, sexualidade, classe social, orientação sexual...). Trata-se de uma ferramenta privilegiada que nos permite analisar as causas estruturais da opressão, da violência e das desigualdades na sua complexidade, incluindo as estruturas de poder que as sustentam, com o objetivo de contribuir para a sua transformação.
Transportar esta abordagem, na sua totalidade, para a política externa e de cooperação passa por reconhecer que é necessária uma mudança nas estruturas de pensamento e ação para incorporar perspetivas decoloniais e ecofeministas
Transportar esta abordagem, na sua totalidade, para a política externa e de cooperação passa por reconhecer que é necessária uma mudança nas estruturas de pensamento e ação para incorporar perspetivas decoloniais e ecofeministas, que integrem a economia feminista e dos cuidados, que aprendam e dialoguem com as epistemologias dos "suis globais". Isto obriga-nos, necessariamente, a desaprender, a questionar-nos, para dar espaço a outros saberes.
O debate já começou e é fundamental que nem os movimentos anti-direitos, nem a tentação de usar a abordagem feminista como uma operação de "lavagem de imagem" — purplewashing e/ou pinkwashing — travem os avanços necessários para subverter as estruturas de poder que sustentam as violências e desigualdades. Pelo contrário, é necessário aprofundar a reflexão e a análise e, paralelamente, começar a pôr em prática novas formas de fazer política externa e de cooperação para o desenvolvimento a todos os níveis.
A nível global, é imprescindível aproveitar todos os espaços disponíveis para ampliar o impacto desta abordagem nas relações internacionais e nas políticas públicas
No caso espanhol, temos tido a oportunidade de trabalhar para que a integração da abordagem feminista na política de cooperação, tal como consagrado na nova Lei de Cooperação, seja realmente transformadora, interseccional e decolonial. A nível global, é imprescindível aproveitar todos os espaços disponíveis para ampliar o impacto desta abordagem nas relações internacionais e nas políticas públicas. A IV Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento (FfD4), que terá lugar em Sevilha em 2025, ou a Comissão das Nações Unidas para o Estatuto da Mulher (CSW69), 30 anos após a IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, em Pequim, podem ser dois espaços privilegiados para isso.
- Em 2022, o governo sueco de coligação afastou-se da Política Externa Feminista, tal como o novo governo da Argentina, presidido por Javier Milei.
- Arco Escriche, Inés (2022): LAS POLÍTICAS EXTERIORES FEMINISTAS: más allá del discurso. CIDOB Notes Internacionals, 269. Março 2022
- Güezmes García, Ana y Romero Castelán, Brianda (2023): Diez años de política exterior feminista y política de cooperación internacional para el desarrollo feminista. Una oportunidad para América Latina y el Caribe. CEPAL.