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11 jun 2022 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Financiamento para o Desenvolvimento, Ajuda Pública ao Desenvolvimento

Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2022 "Financiar o Desenvolvimento: Compromissos e Desafios" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.
 

Por Ana Filipa Oliveira, Cármen Maciel e Teresa Antunes, membros do Grupo de Trabalho Aid Watch da Plataforma Portuguesa das ONGD

No discurso público, a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD), enquanto instrumento financeiro dos Estados de apoio ao desenvolvimento, surge entre a urgência, a utopia e a impossibilidade de alcançar os compromissos internacionais. Há cerca de 50 anos que os países mais ricos, membros do Comité de Ajuda ao Desenvolvimento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (CAD/OCDE), se comprometeram a dedicar 0,7 % do seu Rendimento Nacional Bruto (RNB) para a APD, porém poucos o conseguiram alcançar nos prazos acordados. 

Mas por que é que a sociedade civil continua a insistir no papel da APD? Sobretudo, pela sua singularidade e por ser a tradução máxima da solidariedade entre países, uma vez que os Estados se dispõem a investir parte do seu RNB em programas de desenvolvimento. A par disso, a APD desempenha também um papel fulcral nas economias ditas “menos avançadas”, onde o risco de investimento é mais elevado e há maior oscilação de investidores privados, e porque financia áreas consideradas vitais para o bem-estar das populações, nomeadamente em sectores como a saúde e educação, bem como as organizações da sociedade civil que desempenham um papel fundamental em diversos setores. 

No entender das organizações da sociedade civil, e numa visão partilhada pelo Grupo de Trabalho Aid Watch da Plataforma Portuguesa das ONGD, a APD desempenha um papel fundamental também no atenuar dos impactos das sucessivas crises mundiais, como aquelas que estamos neste momento a vivenciar com a crise pandémica e com a actual guerra na Ucrânia, que coloca desafios nos sistemas de alimentação de diversas regiões do mundo1 .

Desde 2012 que o sistema de contabilização da APD (ou seja, do que deve constar no cálculo do que é ou não o investimento público para o desenvolvimento) tem conhecido várias reformas (a chamada “modernização da APD”), embora a sua revisão não tenha sido consensual. A narrativa que subjaz a estas reformulações é a de que o investimento público não é suficiente para fazer face aos desafios globais de financiamento do desenvolvimento e que é necessário utilizar a APD como instrumento de “alavancagem” de outros fluxos financeiros. É neste contexto que surge a importância do sector privado e da utilização de parte do financiamento público em Instrumentos do Sector Privado (ISP). Desde o início do debate, há uma década, que as organizações da sociedade civil, incluindo a Plataforma, têm assumido um papel de supervisão do processo de modernização, alertando para os riscos da “privatização da APD” 2.

A evolução da APD portuguesa 

Na última década, como consequência da crise financeira que levou Portugal a pedir assistência externa, a APD portuguesa sofreu cortes substanciais. Desde então, apesar de um período tímido de recuperação, o contributo do país para o desenvolvimento global não voltou aos níveis registados antes da crise, estando atualmente estagnado em valores abaixo dos 0,2% do RNB. Em 2021, o país dedicou aproximadamente 450 milhões de dólares à APD, um aumento de 4% face a 2020, mas que, para além de corresponder a apenas 0,18% do RNB se deveu, em larga medida, às doações de doses de vacinas contra a Covid-19, sem a qual a APD portuguesa teria registado mais uma descida. 

Ao mesmo tempo que se afasta cada vez mais dos compromissos internacionais, a APD portuguesa tem também vindo a acompanhar a tendência de “modernização” descrita anteriormente, procurando dar grande importância à tentativa de mobilizar financiamento privado  para colmatar a incapacidade em dedicar fundos públicos para o setor. A este respeito, a Sociedade Civil tem alertado para a necessidade de Portugal garantir que este tipo de estratégias não resulta na apropriação das políticas de cooperação por parte de objetivos como a internacionalização da economia nacional – uma preocupação realçada, implicitamente, no mais recente Peer Review do CAD/OCDE.

A tentativa de Portugal de mobilizar financiamento adicional para a cooperação, além dos montantes inscritos nos Orçamentos do Estado, tem-se também refletido na inversão das tendências da utilização dos canais bilateral e multilateral. Com efeito, ao contrário do que acontecia até há cerca de 10 anos, o canal multilateral é hoje a via dominante através da qual Portugal canaliza a sua APD – o que se deve, em larga medida, às contribuições para o orçamento da União Europeia. Uma vez que Portugal é um recetor líquido de fundos europeus e que uma das principais prioridades da cooperação portuguesa tem passado pela implementação de programas financiados por Bruxelas (a chamada cooperação delegada), a Sociedade Civil tem alertado para a possibilidade de, nos últimos anos, esta estratégia estar a ser utilizada como forma de minimizar as contribuições efetivas de Portugal para o desenvolvimento global.

Portugal no contexto atual da APD e da solidariedade internacional

Os recentes dados divulgados pelo CAD/OCDE3 indicam que, globalmente, a APD total aumentou, em 2021, 4,4% em termos reais em relação a 2020, atingindo um novo pico. No entanto, esse aumento deve-se principalmente ao apoio dos membros do CAD no âmbito de respostas à COVID-19, particularmente sob a forma de doações de vacinas (em grande medida, doações de doses excedentárias) para responder às injustiças globais que se verificaram nesse contexto. Se os custos das vacinas fossem excluídos, a APD cresceria apenas 0,6%, em termos reais, em comparação com 2020 – enfatizando a necessidade crescente dos estados olharem com maior cuidado e seriedade para o que é necessário fazer para assegurar o cumprimento das metas inscritas na Agenda 2030. 

Os momentos-chave da história moderna (numa primeira fase, com o estabelecimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio, em 2000, da realização da Conferência de Monterrey sobre Financiamento para o Desenvolvimento, em 2002, ou através da Cimeira do G8 em Gleneagles, em 2005; e, numa segunda fase, com o renovar dos compromissos internacionais, em 2015, com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), mostram que, apesar dos picos de crescimento da APD que se concentram perto destas datas assinaláveis, as flutuações conjunturais (crises económicas, conflitos geopolíticos e/ou crises humanitárias que surgem na senda das migrações forçadas) têm vindo a afetar o nível de envolvimento dos estados face aos compromissos estabelecidos. 

No entanto, os exemplos bem sucedidos dos países do CAD, que, em 2021 (no segundo ano de pandemia à escala global) cumpriram ou excederam a APD, como a Dinamarca (0,70%), Alemanha (0,74%), Luxemburgo (0,99%), Noruega (0,93%) e Suécia (0,92%), demonstram que, num mundo em acelerada mudança, onde a instabilidade política, social e económica é a marca-de-água da atualidade, a solidariedade internacional (seja na relação entre os estados, seja na procura de soluções para responder às crises que enfrentamos), pode ser reforçada através da APD, revelando-se esta um instrumento singular na afirmação dos compromissos de entreajuda e cooperação para o desenvolvimento.

Como o CAD/OCDE refere na análise aos dados preliminares de APD, esta deve ser encarada como fonte estável de financiamento do desenvolvimento e deve amortecer o impacto de crises financeiras (como aconteceu após a crise da dívida mexicana no início da década de 1980, da recessão do início dos anos 90 ou da crise financeira em 2008). Por outro lado, a resiliência da APD em responder ao atual quadro da crise provocada pela COVID-19 é igualmente fator de relevo que deveria fazer com que qualquer estado insistisse na sua pertinência e no cumprimento dos compromissos assumidos internacionalmente. 

O que é que será ainda necessário para que a política externa portuguesa siga caminho para um alinhamento pleno com a agenda do Desenvolvimento, cumprindo a sua cota parte no papel que lhe cabe de contribuir para o cumprimento das metas internacionais em matéria de Ajuda Pública ao Desenvolvimento? 

 

1   Sobre este assunto, ler “Impacto da guerra na Ucrânia nos países em desenvolvimento”, disponível em https://www.plataformaongd.pt/noticias/impacto-da-guerra-na-ucrania-nos-paises-em-desenvolvimento
2  Sobre esta matéria, ler o relatório Tempo de agir – Como os Instrumentos do Sector Privado estão a minar os orçamentos da APD, EURODAD, disponível em https://mundocritico.org/wp-content/uploads/2022/03/220322_time-for-action-report_PT_pag.pdf 
3 https://www.oecd.org/dac/financing-sustainable-development/development-finance-standards/ODA-2021-summary.pdf 


 

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