19 jul 2021 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Digitalização para o Desenvolvimento/ Transição Digital, Presidência da UE
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2021 "Relações União Europeia-África: Que Futuro?" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.
Autora: Priscilla Chomba Kinywa, Especialista em Estratégia de Transformação Digital
Ao longo das últimas duas décadas tiveram lugar várias conversas sobre o potencial da digitalização para acelerar a concretização de objetivos mutuamente benéficos para as nações africanas e a União Europeia. Entre estes objetivos contam-se entre outros: melhores oportunidades económicas; serviços públicos sensíveis ao género em áreas como a saúde e a educação; participação dos cidadãos na governação e no governo democrático; paz e segurança; e um abrandamento ou inversão dos danos causados ao ambiente.
Embora a condição da humanidade esteja indiscutivelmente ligada, independentemente da localização (os efeitos das alterações climáticas são sentidos em todo o globo; em muitos continentes prevalecem profundas polarizações e desigualdades; a insegurança e os abusos dos direitos humanos são generalizados), é preciso compreender que os nossos contextos culturais, crenças religiosas, ideologias políticas e trajetórias económicas são diferentes e, por conseguinte, exigem uma compreensão e contextualização profundas dos nossos percursos para a digitalização.
As diferenças tornam-se ainda mais claras quando discutimos uma parceria África-UE sobre digitalização - de acordo com o Fórum Económico Mundial, a população jovem de África triplicará nas próximas três décadas enquanto, em contraste, os dados mostram que a população envelhecida da Europa aumentará significativamente. A digitalização representa uma oportunidade para que África possa fornecer competências e conhecimentos especializados à Europa a partir do continente, mas com uma penetração da Internet de cerca de 40% em África e mais de 90% na Europa, tais benefícios não podem ser plenamente realizados.
Muitas vezes esquecida na conversa sobre a digitalização é a forma como a tecnologia pode ser uma espada de dois gumes se não for encarada de forma ponderada e orientada para os dados
Enquanto as nações desenvolvidas da UE e outras geografias discutem o impacto do seu processo de industrialização no ambiente e trabalham para reduzir as suas pegadas de carbono e a sua contribuição para o desastre climático, as nações em desenvolvimento de África ainda se encontram nas fases iniciais do seu desenvolvimento e não devem ser penalizadas e impedidas de fazer crescer as suas economias. A tecnologia e a digitalização apresentam uma oportunidade para práticas mais neutras em termos de carbono, transferência de conhecimentos sobre tecnologias amigas do ambiente e oportunidades para investigação colaborativa sobre como as nações em desenvolvimento o podem fazer enquanto trabalham para proteger o ambiente. Neste momento, a regulamentação para promover soluções energéticas amigas do clima é manifestamente insuficiente e menos de metade dos países africanos têm uma política de resíduos eletrónicos implementada. Os investimentos certos na digitalização produzirão não só melhores resultados para o continente africano mas também para todo o mundo.
Muitas vezes esquecida na conversa sobre a digitalização é a forma como a tecnologia pode ser uma espada de dois gumes se não for encarada de forma ponderada e orientada para os dados e que tenha em conta as consequências potencialmente negativas resultantes de uma estratégia de receita única que não leve em consideração as desigualdades no acesso à tecnologia.
Embora a digitalização dos processos governamentais seja desejada, fazê-lo antes de assegurar um acesso equitativo para todos os cidadãos irá simplesmente aprofundar essa divisão. Os poucos privilegiados que possuem conhecimentos informáticos e têm acesso a um dispositivo com o qual interagir com os serviços governamentais terão ainda mais acesso a oportunidades, deixando os mais pobres ainda mais para trás.
Além disso, a realização dos objetivos da parceria África-UE depende de uma boa governação. Isto só pode ser alcançado se os cidadãos tiverem igualdade de oportunidades para participar no discurso cívico, envolver os seus líderes nas questões que lhes interessam e participar nas estruturas locais e nacionais de tomada de decisão. A pandemia de COVID-19 expôs o quanto aqueles que ficaram para trás no seu acesso à tecnologia se distanciaram ainda mais dos espaços de decisão, com as suas vozes sem serem ouvidas, com acesso limitado à informação certa e, em alguns casos, sem meios de recurso para lutar contra as injustiças de que são alvo.
Testemunhámos também políticos em todos os contextos a utilizar o poder da tecnologia para criar desinformação, exercer vigilância sobre os seus cidadãos, silenciar os seus críticos e influenciar os resultados políticos.
Talvez o mais importante na conversa sobre digitalização seja o potencial que tem para ligar comunidades a nível global. Numa época em que assistimos a uma polarização profunda, é fundamental que a tecnologia seja aproveitada para permitir às culturas e comunidades interagir, partilhar e envolver-se, a fim de aprofundar a compreensão e aumentar a empatia. Isto poderá potencialmente conduzir a um maior respeito pelos direitos dos grupos vulneráveis - mulheres, pessoas não brancas, pessoas com uma orientação sexual diferente, e outros.
Talvez o mais importante na conversa sobre digitalização seja o potencial que tem para ligar comunidades a nível global
E, claro, os dados mostram que a tecnologia contribui para resultados económicos positivos, que por sua vez têm um efeito em questões como a migração irregular e os conflitos provocados por desafios económicos.
Existem muitas barreiras nesta viagem de digitalização, particularmente para o continente africano. Por um lado, faltam infraestruturas básicas para a digitalização, tais como soluções de baixo consumo energético e competências digitais adequadas no sistema escolar e na mão-de-obra, e por outro estão também presentes desafios que parecem mais urgentes, tais como sistemas de saúde e educação deficientes, tornando difícil para os governos investir adequadamente na digitalização, mesmo quando as provas sugerem que a própria digitalização pode ajudar a fazê-los avançar nestas áreas. Para a UE, o impacto económico da pandemia da COVID-19 ainda não foi totalmente compreendido e existe o risco de os países da UE se voltarem para dentro, numa tentativa de reconstrução para as suas próprias populações em primeiro lugar, negligenciando os benefícios que existem quando investem em políticas adequadas de digitalização e na sua implementação.
Com o envolvimento e investimento certos na digitalização, é evidente que as populações de África e da UE têm uma oportunidade de se relacionarem de formas que resultarão em soluções inovadoras para os desafios globais que a humanidade enfrenta
Com o envolvimento e investimento certos na digitalização, é evidente que as populações de África e da UE têm uma oportunidade de se relacionarem de formas que resultarão em soluções inovadoras para os desafios globais que a humanidade enfrenta e devem ser tratadas como uma prioridade, independentemente do que outras agendas possam ameaçar atravessar no seu caminho.
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2021 "Relações União Europeia-África: Que futuro?" Leia ou faça download da edição completa aqui.