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07 jul 2020 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Educação para o Desenvolvimento e a Cidadania Global

Este artigo foi originalmente publicado na Edição Especial da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2020 "A Pandemia de Covi-19 e os Desafios do Desenvolvimento". Leia ou faça download da edição completa aqui.

 

Autora: Luísa Teotónio Pereira

Fechados em casa. E, no entanto, sempre a ver o que se passa no mundo. Porque todo o mundo está fechado em casa – os que têm casa, e os que não são trabalhadores essenciais. Sobressaem realidades escondidas. Para que serve um serviço nacional de saúde – e o que acontece onde não existe. Quem são as pessoas que cuidam de nós – pessoal de saúde, e não só médicos/as e enfermeiros/as, mas também técnicos e auxiliares de todas as tarefas necessárias, profissionais que tratam e apoiam  pessoas doentes, idosas, onde quer que estejam. Quem assegura a nossa vida coletiva essencial – produtores/as de bens alimentares e alguns outros, trabalhadores/as dos transportes, das forças de segurança e proteção civil, do pequeno e grande comércio de bens prioritários, dos serviços de comunicação. Quem está mais desprotegido – as pessoas que estão fora do seu país, por que foram obrigadas a isso, e aquelas que estão fragilizadas, por razões de saúde física ou mental, por razões económicas, por razões sociais.  Comparam-se muitos números, um pouco menos as políticas, menos um pouco as estratégias, e ainda menos o que está por detrás delas.  Fala-se de solidariedade e cooperação, e expandem-se bons exemplos. Também há notícias de conflitos de interesses e autoritarismo, de desprezo pela ciência, de campanhas de ódio. Queremos saber mais sobre vírus, imunidades e pandemias, sobre como enfrentá-los, sobre o que se fez no passado. As medidas tomadas no nosso país são próprias, mas são também fruto do que se foi aprendendo com outros países. Isto acontece no lugar onde moramos e em toda a parte.

As raízes da Educação para o Desenvolvimento e para a Cidadania Global (EDCG) estão no meio de nós: tentar olhar para longe (e não só geograficamente), a partir de onde estamos; trazer à luz do dia o que está invizibilizado e é fundamental; perceber que por trás de alguma informação há muita outra que contribui para explicar a primeira; compreender que há atitudes, e forças opostas que se ativaram, porque nas suas dinâmicas querem ter uma palavra a dizer sobre o presente, com olhos postos no futuro; aprender, simultaneamente, sobre cada um de nós, sobre todos os outros, sobre  o nosso mundo.

Neste terreno fértil que nos é dado viver, crescem as incertezas e os desafios. Podem crescer também as desorientações, o deixa andar, a concentração nos constrangimentos próprios a resolver. Sabendo-se que não há planeta B, que no que existe 99% das pessoas estão afetadas por vários tipos de problemas, e que o cada um/a por si nunca criou força para os enfrentar.
Entre o que sabemos e o que queremos fazer, pessoal e coletivamente, há um universo de dúvidas, possibilidades, hesitações e experimentações. Com a presente situação, este universo expandiu-se e adensou-se. Ganhámos uma noção vivencial das interdependências, das fragilidades, das prioridades  - e das contradições.  É neste espaço que a EDCG, enquanto processo pedagógico, faz sentido e floresce. 

Ganhámos uma noção vivencial das interdependências, das fragilidades, das prioridades  - e das contradições.  É neste espaço que a EDCG, enquanto processo pedagógico, faz sentido e floresce.

Não nos revela o que não procuramos (era bom…). Não traz soluções prontas a utilizar (como gostaríamos que as houvesse!). Não proporciona conforto (e dele tanto precisamos!).  Disponibiliza abordagens temáticas baseadas na informação e no questionamento; partilha e re-inventa diálogos que permitem descobrir realidades e conexões e interpretar o que nos escapa; oferece-nos pistas de ação fundadas nas inquietações sentidas e formuladas e nos princípios éticos e valores da justiça, da equidade, da solidariedade, da cooperação. Intencionalmente, podemos contribuir, em conjunto com outros, para transformar as sociedades e alterar o sistema em que vivemos.

Parece evidente que vamos precisar destes processos pedagógicos ainda mais do que até aqui. A pandemia tornou mais desigual o que já era desigual. Inflacionou os mecanismos de controlo e de descriminação de cidadãs e cidadãos em muitos lugares. Criou vias rápidas para a afirmação de autoritarismos de várias espécies em determinados países. Colocou em cima da mesa decisões urgentes e difíceis, por exemplo: como converter as companhias aéreas, o transporte automóvel e o turismo em atividades compatíveis com as exigências da luta contra a crise climática? Como proteger e melhorar o emprego quando a tendência era para a sua precarização? Como afirmar a centralidade dos serviços públicos, quando as forças do mercado se empenham em estratégias para os enfraquecer e privatizar? Como favorecer a autonomia - pessoal, comunitária,  nacional - sem cair no isolamento e no antagonismo? Como transformar uma economia ao serviço  do 1% e redirecioná-la para os  99%? O mais provável é que, no contexto de uma crise sanitária, económica e social sem precedentes, com diversas expressões a nível mundial, as contradições se agudizem. 

É no calor da desordem e da incerteza que a reflexão crítica, cuidada, aberta e solidária pode fazer a diferença. Precisamos de criar e preservar o tempo e espaço necessários. Incentivar os diálogos prioritários e significativos, locais e globais. Envolver mais pessoas e coletivos. Fortalecer as alianças que fazem sentido. Injetar de coerência a nossa ação.

É no calor da desordem e da incerteza que a reflexão crítica, cuidada, aberta e solidária pode fazer a diferença.

Enquanto educadoras e educadores, estamos preparados? Sim e não. Nunca estamos, certo. (Ninguém estava preparado para este súbito e avassalador surto de um desconhecido coronavírus). Mas em Portugal e muitos outros países há uma significativa história e experiência acumulada no domínio da EDCG. Será na intensidade e turbilhão dos acontecimentos que, contando com esse património, teremos de ir desconstruindo e construindo, aprendendo, experimentando, partilhando, revendo.
 

Este artigo foi originalmente publicado na Edição Especial da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2020 "A Pandemia de Covi-19 e os Desafios do Desenvolvimento". Leia ou faça download da edição completa aqui.

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