20 jun 2022 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Ajuda Pública ao Desenvolvimento
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2022 "Financiar o Desenvolvimento: Compromissos e Desafios" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.
Por Salvatore Nocerino, Consultor de políticas e advocacy, Concord Europe
Faz já 52 anos que foi acordado o objetivo de 0,7% do RNB para a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD). Em outubro de 1970, foi aprovada uma Resolução da ONU que apelava aos países "economicamente avançados" da altura para aumentarem a sua APD aos países em desenvolvimento, com o prazo inicial de 1975! Spoiler: muito poucos países cumpriram consistentemente esta meta e a União Europeia no seu todo teve de renovar várias vezes o seu compromisso para com este objetivo. Em 2015, a UE acordou 2030 como prazo final para o cumprimento.
Agora, em 2022, é bem sabido que este objetivo está de facto muitíssimo longe de ser alcançado. No ano passado, a APD dos países da OCDE atingiu apenas 0,33% do seu RNB, menos de metade do compromisso de 0,7%. A nível da UE, embora as coisas pareçam estar a progredir um pouco, apenas 0,49% do RNB total da UE foi atribuído à APD em 2021, registando mesmo uma ligeira diminuição em relação aos valores do ano anterior. Entretanto, o progresso dos indicadores de desenvolvimento humano deu vários passos atrás pela primeira vez em décadas após o duro golpe da pandemia, e milhões de pessoas estão a ser empurradas para a pobreza e a exclusão.
Com menos de oito anos para cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) até ao prazo de 2030, é evidente que nem a UE nem o grupo mais alargado de países desenvolvidos estão a fazer o suficiente para enfrentar os desafios que estiveram na origem deste objetivo há quase meio século atrás. Além disso, estamos a entrar naquilo que a ONU atualmente define como um cenário de "crises múltiplas", ou seja, a combinação da já bem conhecida crise climática de longo prazo, da pandemia COVID-19 e, mais recentemente, da guerra na Ucrânia, com os seus muitos efeitos colaterais. Se a UE está seriamente empenhada na construção de parcerias para enfrentar estes desafios, são urgentemente necessários mais recursos para o fazer.
Qual é o ponto da situação atual?
Existem grandes diferenças entre os Estados-Membros da UE na sua abordagem à cooperação para o desenvolvimento e, mais concretamente, nos seus níveis de despesa em APD. Historicamente, apenas alguns Estados-Membros atingiram os objetivos de forma consistente: o Luxemburgo, a Suécia, a Dinamarca e, mais recentemente, a Alemanha. Quando ainda pertencia à UE, o Reino Unido era também um dos grandes doadores e um dos países com melhor desempenho nesta área, especialmente porque consagrou este compromisso na sua legislação nacional até à sua saída no ano passado.
Por outro lado, a grande maioria dos Estados-Membros está muito abaixo do objetivo de 0,7%, apesar de algumas exceções como a França, Países Baixos ou Bélgica, que têm vindo a registar progressos constantes ao longo dos últimos anos. Pelo contrário, os restantes países mal atingem o objetivo de 0,33%, que foi fixado especialmente para os países que aderiram à UE depois de 2002. Nesse sentido, a despesa da APD portuguesa em 2021, por exemplo, está em linha com outros países do Sul, como a vizinha Espanha, ou Itália, ambos com cerca de 0,2%.
Finalmente deve ser feita uma menção especial às instituições da UE, uma vez que estas praticamente não dispõem de recursos próprios e o seu orçamento é quase inteiramente constituído pelas contribuições dos Estados-Membros (e, portanto, não pode ser medido em relação à percentagem de despesa baseada no RNB). No entanto, os valores absolutos mostram que, se fossem contadas como um país, as instituições da UE seriam o segundo maior doador da Europa, depois da Alemanha. Mas o que queremos dizer quando falamos de instituições da UE? Basicamente referimo-nos à Comissão Europeia enquanto ator principal e, em menor medida, ao Banco Europeu de Investimento (BEI), embora este último tenha visto o seu papel reforçado nos últimos anos.
Para além dos valores brutos…
Como as OSC têm afirmado constantemente, não se trata apenas de quantidade, mas também de qualidade. A forma como a UE presta a sua APD é importante e, nesse sentido, é necessária uma análise mais aprofundada a fim de verificar se toda a APD contribui ativamente para reduzir as desigualdades e a pobreza nos países parceiros.
É, portanto, essencial fazer uma distinção entre ajuda "genuína" e "inflacionada". Como indicam os relatórios AidWatch da CONCORD, há muitas formas de os doadores poderem reportar como APD certas rubricas orçamentais que não têm qualquer impacto no desenvolvimento, ou que nunca atingirão os seus objetivos nos países parceiros. É o caso, por exemplo, dos custos com refugiados dentro dos países doadores, que, ao abrigo das atuais regras do CAD da OCDE, podem ser reportados como APD dentro de determinadas condições, tornando o país doador no próprio beneficiário da ajuda. Este fim, que se encontrava em declínio nos últimos anos, poderá registar um aumento do financiamento em virtude do impacto da guerra na Ucrânia.
E, especificamente este ano, as doações de doses excedentárias de vacinas COVID-19 que os países ricos fizeram depois de comprarem várias vezes mais doses do que as necessárias para vacinar a sua população podem agora ser contadas como APD. Apesar do forte apelo das OSC para evitar esta abordagem, os países da UE reportaram até 1,5 mil milhões de euros nestas doações de vacinas em 2021. Para alguns países, como a Eslovénia, Eslováquia, Hungria, Espanha ou mesmo Portugal, esta foi uma grande parte dos seus orçamentos para a ajuda, representando mais de 5% do total da sua APD. Outros, tais como os Países Baixos, decidiram não reportar doações de vacinas em excesso como APD.
É necessária mais e melhor APD!
No entanto, para além das assimetrias, os números mostram que a UE é, ano após ano, o maior bloco de doadores do mundo: em 2021, representava 46% de toda a APD mundial. Esta é certamente uma boa notícia, e dá à UE um papel proeminente na definição das tendências que impulsionam a cooperação internacional, tanto em termos quantitativos como qualitativos. No entanto, e apesar dos compromissos com os princípios de eficácia que as OSC têm defendido e mantido na agenda nos últimos anos, tais como a simplificação de instrumentos e modalidades de ajuda com um novo quadro regulamentar e mecanismos de prestação de contas acrescidos, a UE tem ainda um longo caminho a percorrer em termos de quantidade e de qualidade.
Recentemente, a pandemia da COVID-19 mostrou-nos a importância de uma resposta coordenada para enfrentar os desafios globais emergentes, e o valor acrescentado que os recursos públicos têm na redução dos impactos adversos das crises. Neste contexto, a APD, devido à sua natureza concessional, é um dos instrumentos mais poderosos para apoiar os que ficam mais para trás e os mais afetados pelas crises. Assim, e apesar da sua diluição conceptual devido à emergência de outros tipos de fluxos e às mudanças na sua forma de contabilização, a APD continua a ser essencial, pois permite um controlo adequado da sua utilização, mantendo os doadores responsáveis pelos seus compromissos e despesas.
E agora, enquanto ainda estamos a lidar com as consequências de longo prazo da pandemia, o mundo já entrou numa nova crise: a guerra causada pela invasão russa da Ucrânia, e os múltiplos efeitos mundiais não só na segurança humana, mas também no abastecimento alimentar, no aumento dos preços dos alimentos e nas ruturas das cadeias de abastecimento. Além disso, a crise climática que permanecerá irreversivelmente connosco durante as próximas décadas sublinha ainda mais a necessidade de aumentar os esforços para enfrentar todos estes desafios de uma forma coordenada e colaborativa. Neste cenário de crises múltiplas, temos de assegurar que a UE se comporta à altura das circunstâncias, ou pelo menos cumpre os seus compromissos de há décadas.
Nesse sentido, a APD pode ser vista apenas como uma gota no oceano, um primeiro passo para acompanhar as expectativas. Mas este primeiro passo é essencial para iniciar a viagem.