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05 jul 2021 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Presidência da UE, Cooperação para o Desenvolvimento

Este artigo [1] foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2021 "Relações União Europeia-África: Que Futuro?" Leia ou faça download da edição completa da Revista aqui.

 

Autoras: Patrícia Magalhães Ferreira, Investigadora e consultora sobre desenvolvimento e cooperação, e Andreia Oliveira, Consultora em cooperação para o desenvolvimento

O período 2020-2021 marca uma nova fase das relações UE-África.  O continente africano foi sempre um enfoque da política europeia de cooperação para o desenvolvimento, tendo o relacionamento entre os blocos evoluído ao longo do tempo. Atualmente, a necessidade de mudar o paradigma do relacionamento entre a UE e África é consensual , com ambas as partes a (re)afirmarem a intenção de implementar uma parceria mais efetiva e equilibrada. Embora esta intenção dificilmente se traduza numa parceria “entre iguais”, dadas as assimetrias contínuas (de desenvolvimento) entre as duas partes, tal não impede, no entanto, de reunir as premissas e condições necessárias para que a relação evolua de forma mais equitativa. Mas estarão estas a ser construídas?

O período 2020-2021 marca uma nova fase das relações UE-África.  (...) Atualmente, a necessidade de mudar o paradigma do relacionamento entre a UE e África é consensual

Uma das causas da volatilidade da parceria UE-África, até agora, deve-se às suas diferentes configurações, num mosaico complexo de estratégias e instrumentos sobrepostos, mais do que complementares. Um dos elementos essenciais será uma maior conciliação entre a nova parceria UE com os países de África, Caraíbas e Pacífico - ACP (a aliança mais antiga e abrangente da UE, com um novo acordo que substitui o de Cotonou) -, e a parceria continental, refletida na Estratégia da UE para África (2020) que dará origem, espera-se, a uma nova estratégia conjunta[2]. 

O posicionamento das partes tem-se vindo a assumir progressivamente de forma estratégica e com base nos benefícios mútuos, pelo menos a nível retórico mas não só, com a UE a tentar implementar uma abordagem que siga as suas ambições geopolíticas, e com África a pretender reforçar uma visão mais conjunta e com maior assertividade no que pretende relativamente às parcerias externas, das quais a UE é peça fundamental. Esta tentativa de mudança de paradigma, da verticalidade para uma maior horizontalidade, demarca-se assim por uma perspetiva mais estratégica e realista sobre o que é exequível atingir, ultrapassando também, pelo menos em parte, o peso do legado histórico que tem marcado muitos dos debates entre as partes.

A parceria formal ACP-UE e o relacionamento continental apelam, ambos, ao reforço do multilateralismo, traduzido na aspiração a uma maior concertação e posicionamento conjunto entre as partes, até aqui incipiente. Tanto o Fórum de Alto Nível UE-África sobre Investimento Verde, liderado por Portugal, como a Cimeira sobre o Financiamento das Economias Africanas, promovida por França, materializam estas concertações para evitar maiores assimetrias na recuperação da pandemia COVID-19. Mas, apesar de estes encontros terem como pano de fundo a Agenda 2030 ou o Acordo de Paris, estes enquadramentos internacionais não têm sido sistematicamente usados como bases concretas do relacionamento entre a UE e África, como se observa na nova Estratégia da UE para África.  Além disso, para progredir numa maior articulação a nível multilateral, onde existe espaço para melhoria, é necessário que a UE esteja disponível para apoiar também as aspirações africanas em questões essenciais para o desenvolvimento – como a dívida externa ou o acesso a vacinas para a COVID-19, temas atualmente sujeitos a intensos debates.

A transição para uma abordagem mais geopolítica por parte da UE comporta riscos para a sua relação com África.  Relembrando que a UE e seus Estados Membros continuam a ser o principal doador global, a ambição europeia de priorizar interesses considerados mais urgentes ou com maior impacto no plano interno, como as migrações e a segurança, mobilizando todas as políticas para o efeito (incluindo na ação externa), pode diluir a erradicação da pobreza enquanto objetivo principal da política de cooperação para o desenvolvimento, bem como enfraquecer a coerência das políticas para o desenvolvimento. A este desafio acresce a tendência europeia de instrumentalizar o investimento em desenvolvimento humano enquanto mero veículo para crescimento económico em países parceiros. A perspetiva sobre África como um campo de batalha para a rivalidade entre a UE e a China, tendência observada nos últimos anos, também parece destoar do princípio de interesses interligados e de dinâmica sustentada entre os continentes. Adicionalmente, o reforço da retórica da UE sobre a projeção (ou proteção) do “modo de vida” e dos “valores europeus” na sua ação externa poderá trazer uma nova complexidade ao relacionamento intercontinental. 

A transição para uma abordagem mais geopolítica por parte da UE comporta riscos para a sua relação com África

Para além da vontade política, uma parceria mais equitativa e equilibrada dependerá sempre das condições objetivas para a sua operacionalização , pressupondo a consolidação de mecanismos de decisão e gestão conjuntos. Na realidade, muitas das iniciativas da UE direcionadas para o continente africano continuam a ser definidas numa via de sentido único , baseando-se num diálogo incipiente entre as partes – se de todo existente. Por exemplo, seria de esperar um debate mais exaustivo sobre que tipo de visão intercontinental deverá ser prosseguida, mas a formulação de uma estratégia da UE para África em 2020 implicou pouca participação a nível europeu ou qualquer pré-discussão com parceiros africanos. As consultas atempadas entre as partes, que permitam maior inclusão e participação também por parte da sociedade civil, parecem ser ainda negligenciadas, condicionadas tanto pela necessidade europeia de cumprimento de prazos técnico-burocráticos, como pelo modus operandi consolidado nas últimas décadas, em que a iniciativa europeia tem tido primazia. Torna-se assim necessário que a UE evolua na forma de trabalhar e colaborar com os parceiros africanos, promovendo sistematicamente um diálogo atempado e inclusivo entre as partes.

Para além da vontade política, uma parceria mais equitativa e equilibrada dependerá sempre das condições objetivas para a sua operacionalização (...). Na realidade, muitas das iniciativas da UE direcionadas para o continente africano continuam a ser definidas numa via de sentido único

A evolução de instrumentos europeus e seus mecanismos financeiros segue também esta tendência unívoca, sendo que a negociação para o novo Quadro Financeiro Plurianual da UE foi uma oportunidade perdida para reforçar alguns princípios da eficácia do desenvolvimento. A esperada diluição destes princípios deve-se a mudanças que distanciam os países parceiros das decisões que os irão impactar, decorrentes da integração do FED no orçamento europeu, da crescente proeminência de fundos fiduciários e de instrumentos de investimento sem governação conjunta, e também da transição para um novo Mecanismo Europeu de Apoio à Paz[3]. Se a UE pretende afastar-se de uma dinâmica doador-recetor, deve assegurar a apropriação, a responsabilização conjunta e maior reciprocidade, nomeadamente na fase de programação e implementação de programas de cooperação.

Ao complexo cenário de mudanças na parceria UE-África acresce a obstinação de temas controversos como a questão migratória, a qual pode ser usada como instrumento de pressão entre as partes, tal como observado na crise humanitária em Ceuta de 2021. Este episódio expõe os riscos associados à estratégia de externalização das políticas (e das fronteiras) e ao excesso de confiança europeia na eficácia de recursos financeiros, em detrimento de estratégias conjuntas. A fragilidade da política migratória da UE tem sido também um elemento potenciador de oposições internas, como se observa com a recusa da Hungria em ratificar o novo acordo com países ACP (maio de 2021), e que poderá levar a que esta parceria formal seja competência exclusiva da Comissão Europeia, em vez de partilhada com Estados Membros (como no acordo anterior), minando assim a sua importância ao nível político e estratégico. 

Considerando a oportunidade única para “build back better”, a nova parceria entre a UE e África pode ser retomada de forma mais efetiva, equitativa e equilibrada , desde que as suas fragilidades sejam atempadamente reconhecidas e corrigidas. Mesmo após a Presidência do Conselho da UE, é importante que Portugal mantenha um papel construtivo nesta relação continental, o que passa, nomeadamente, por reforçar a política nacional e europeia de cooperação para o desenvolvimento. 
 

Notas:

[1]  Este artigo deriva do estudo com o mesmo título, publicado em maio de 2021, e foram ambos elaborados para a Plataforma Portuguesa das ONGD, no âmbito do projeto europeu “Towards an Open, Fair and Sustainable Europe in the World”

[2] O Acordo de Cotonou sucedeu aos acordos de Lomé e regeu as relações UE-ACP entre 2000 e 2020, tendo um novo acordo político para os próximos vinte anos sido acordado em abril de 2021, com três protocolos regionais (no caso de África, aplica- -se apenas à África Subsaariana). No caso da parceria continental, a primeira cimeira UE-África realizou- -se em 2000, a última Estratégia Conjunta data de 2007 e a próxima cimeira (a sexta) foi adiada em 2020, ainda sem data.

[3] As implicações do novo instrumento financeiro da ação externa (o IVDCI) e dos vários instrumentos existentes para as parcerias UE África são analisadas no referido estudo.

 

Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de junho de 2021 "Relações União Europeia-África: Que futuro?" Leia ou faça download da edição completa aqui.

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