12 nov 2020 Fonte: Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD Temas: Cooperação para o Desenvolvimento, Igualdade de Género
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de outubro de 2020 "Perspetivas para o Futuro da Cooperação Portuguesa". Leia ou faça download da edição completa aqui.
Autora: Blanca Jiménez Díaz, Especialista em Educação para a Transformação Social e Perspetiva de Género. Agente da igualdade e animadora sociocultural.
Há alguns anos, quando nos espaços de reflexão das Coordenadoras de ONGD espanholas se falava em tornar a perspetiva feminista transversal, criou-se um debate e questionou-se o caminho face ao modelo de desenvolvimento que queríamos alcançar. Nem toda a gente, nem todas as organizações, achavam que tivéssemos de introduzir sempre o género, entendendo possivelmente que só se trata de uma parte, um tópico, um grupo diferente ou uma luta externa e não partilhada por todas… Com o tempo, cada vez mais organizações deram o passo à frente, estabelecendo que o feminismo está intimamente ligado aos direitos, à transformação social, e a uma mudança de modelo. Trata-se de renovar o modo como nos relacionamos, do local ao global, do privado ao público, não é só uma questão de mulheres nem de organizações feministas.
Os movimentos feministas apresentam há anos uma onda de reivindicação e sororidade em cadeia que percorre todo o planeta, e que em 2018 revelou uma força sem precedentes. Este acontecimento não passou despercebido, e representa uma aprendizagem para o resto das organizações e movimentos sociais dos mais distintos tipos. Estes movimentos ligam problemas locais e quotidianos sofridos em todo o planeta. Visibilizam as opressões históricas das mulheres de todo o mundo, como a violência sexual, tal como ocorreu com a campanha global #MeToo, ou Movimento 8M que tem convocado a greve internacional de cuidados, laboral e também estudantil ou de consumo, porque se as mulheres param o mundo para.
Mas não são só reivindicações femininas, os movimentos de mulheres têm tido revindicações históricas relacionadas com os direitos humanos, a cultura da paz, o antirracismo, a sustentabilidade ambiental entre muitas outras . Podemos falar do movimento de mulheres indígenas, com revindicações como o direito à água, o direito à terra, os direitos humanos, etc. Podemos falar dos movimentos ecofeministas, que se propõem a ter um foco no cuidado com a vida, tanto das pessoas como do meio ambiente.
os movimentos de mulheres têm tido revindicações históricas relacionadas com os direitos humanos, a cultura da paz, o antirracismo, a sustentabilidade ambiental entre muitas outras
O ano 2020 e a pandemia de COVID19 trouxeram também grandes aprendizagens relacionadas com o género e com o cuidado da vida. Esta pandemia global colocou os países desenvolvidos em frente ao espelho, revelando a sua própria vulnerabilidade, e também a base em que se sustêm. As organizações ecofeministas tem vindo a mostrar a imagem do iceberg de cuidados como metáfora do sistema económico predominante, na base desse sistema encontram-se os trabalhos (renumerados e não renumerados) imprescindíveis para manter a vida, e, portanto, o sistema. São esses trabalhos que, nestes últimos meses, temos revindicado como imprescindíveis (sanitários, educacionais, de limpeza, geriatria, cuidado de crianças, a agricultura e produção de alimentos, etc.). São os trabalhos menos visíveis, pior pagos, e na sua maioria predominantemente femininos. Não é por acaso, aliás, que grande parte da população migrante trabalhe nessas profissões, principalmente as mulheres. É o que conhecemos como cadeia de cuidados, na qual as mulheres abandonam as suas casas e países de origem deixando de cuidar das suas famílias para cuidar da família de outras pessoas com maior poder aquisitivo em países ricos. Não é por acaso, tão-pouco, que na ponta do iceberg, se encontrem os trabalhos mais bem renumerados e também mais poluentes ou prejudiciais para o meio ambiente. É, portanto, uma questão de modelo de desenvolvimento. Assim, tal como há anos as ONGD trabalham em torno da Dívida Externa, podemos clamar também pela Dívida de Cuidados e o papel fundamental da mulher no desenvolvimento da vida. Como afirma a escritora e ativista italiana Silvia Federici, “a globalização capitalista é em essência uma guerra contra as mulheres, especialmente contra as mulheres pobres, e contra as mulheres que vivem em países pobres”.
Nomes de destaque de ativistas e defensoras de direitos humanos, todas com uma perspetiva feminista, mostraram-nos, e continuam a fazê-lo, diferentes enfoques, opressões, revindicações e alternativas relacionadas com o sistema e o modelo de desenvolvimento vigente. Mulheres como a ativista indígena Hondurenha Berta Cárceres, a espanhola Helena Maleno na fronteira sul de Marrocos, a ativista eco feminista indiana Vandana Shiva ou a eco feminista espanhola Yayo Herrero, entre muitas outras. Assim como todas aquelas mulheres que sustentam, se expandem e agem todos os dias de lugares invisíveis, que ninguém conhece, aquelas que estão nas casas, nos bairros, nos campos, nas fábricas…
Contudo, o género não é só uma questão de mulheres, está relacionado com as pessoas como um todo , bem como com a forma como nos relacionamos, e também com a construção da masculinidade. Deste modo, esses também são grandes desafios para as organizações e também para as políticas. Construir modelos de organização mais horizontais e participativos que tenham em conta as necessidades grupais, familiares e pessoais, capazes de desmantelar as relações de poder, seria uma forma de oferecer boas práticas e alternativas ao sistema atual. Da mesma forma, a aproximação e transformação das masculinidades parecem cruciais para reverter o sistema, como formas interessantes de investigar as ONGD e as políticas de cooperação e educação para o desenvolvimento.
Se o sistema de desenvolvimento tem como base o trabalho de cuidados que não é valorizado ou contabilizado, realizado principalmente por mulheres , maioritariamente pobres e a nível global, e se o cuidado é fundamental para que as sociedades, o planeta, a economia e as políticas se sustentem, então, que relações podem ou devem ser estabelecidas entre o género e o feminismo com o trabalho das ONGD e políticas de desenvolvimento?
o sistema de desenvolvimento tem como base o trabalho de cuidados que não é valorizado ou contabilizado, realizado principalmente por mulheres
Se se trata de tornar as opressões visíveis, reivindicar direitos e oferecer alternativas para o bem comum e para a justiça social do local ao global, como podemos promover uma perspetiva de género a partir das ONGD e das políticas de desenvolvimento, tanto para fora (sociedade) como para dentro (estruturas, decisões, etc.), que servem de experiência, exemplo ou micromodelo deste bem comum?
As ONGD são um dos atores sociais que acompanham esse processo de mudança para um modelo mais igualitário, em prol dos direitos humanos e da inclusão da diversidade, da sustentabilidade e do cuidado com a vida das pessoas e do planeta. Por isso, possivelmente, para encontrar respostas devem-se intensificar a criação de redes, parcerias e a aprendizagem com outros grupos, movimentos e plataformas e, adicionalmente, devem ser ouvidos e colocados como verdadeiros sujeitos políticos, aqueles e aquelas que estão na base do iceberg, que suportam e sustentam o sistema todos os dias.
Estes processos de mudança deveriam ser acompanhados por políticas públicas construídas a partir do cuidado e da sustentabilidade da vida, da perspetiva de género e da defesa dos direitos humanos . Políticas de cooperação que estimulem os países a implementar medidas concretas para transformar as suas estruturas e instituições patriarcais, e combater as normas sociais discriminatórias onde elas ocorrem, em direção a um modelo de desenvolvimento alternativo ao sistema atual - os factos mostram-nos a necessidade dessa mudança.
Estes processos de mudança deveriam ser acompanhados por políticas públicas construídas a partir do cuidado e da sustentabilidade da vida, da perspetiva de género e da defesa dos direitos humanos
Promover processos de transformação social com uma perspetiva de cidadania global implica, em suma, uma perspetiva de género que seja capaz de inverter o sistema e colocar a vida no centro, uma vida sustentável a longo prazo e que valha a pena ser vivida por todas.
Badajoz, setembro de 2020
Tradução por Carlota Pereira
Este artigo foi originalmente publicado na Edição da Revista da Plataforma Portuguesa das ONGD de outubro de 2020 "Perspetivas para o Futuro da Cooperação Portuguesa". Leia ou faça download da edição completa aqui.