11 abr 2023 Fonte: CIVICUS Temas: Advocacia Social e Política, Sociedade Civil

A sociedade civil enfrenta sérios desafios em 2023. Vários conflitos e crises – incluindo a erosão das democracias, o aumento dos preços dos alimentos e a guerra na Ucrânia – contribuem para o aumento das restrições à ação da sociedade civil, na altura em que esta é mais necessária.
O relatório “State of Civil Society” da Civicus, lançado no dia 30 de março, analisa o ano de 2022 e explora as tendências da ação da sociedade civil a vários níveis - desde as lutas pela democracia, inclusão e justiça climática até às exigências de reforma da governança global.
Da análise feita, a organização destaca algumas tendências cruciais às quais devemos estar atentos:
1. A sociedade Civil está a desempenhar um papel fundamental na resposta a conflitos e crise humanitárias – e está a enfrentar represálias
O ano de 2022 ficou marcado pela invasão da Ucrânia pela Rússia. Mas a guerra na Ucrânia esteve longe de ser o único conflito no mundo nesse ano – a Civicus destaca os conflitos na Etiópia e na Síria, a título de exemplo de conflitos que têm causado um imenso sofrimento humano e um custo devastador. A Sociedade Civil tem desempenhado um papel fundamental nestes contextos, prestando serviços essenciais, ajudando e defendendo as vítimas, e monitorizando os ataques aos direitos humanos, mas os Estados afetados por conflitos e crises muitas vezes veem a sociedade civil como uma fonte de contra-poder e contra-narrativas e um competidor por recursos, e por isso encetam esforços no sentido de a reprimir. Os exemplos são vários: na Etiópia, ativistas e jornalistas têm sido detidos por um Estado determinado a controlar o fluxo de informações; no Mali, a junta militar dominante proibiu as atividades de algumas organizações da sociedade civil; em Itália, vários grupos da sociedade civil enfrentam julgamento por resgatar migrantes no mar.
A Civicus deixa o apelo à comunidade internacional para que haja um comprometimento em reconhecer, respeitar e apoiar o papel da sociedade civil em cenários de crise e conflito.
2. Falhas na governança global evidenciam a urgência de uma reforma
“O sistema internacional demonstra ser cada vez mais inapto para o seu propósito, quando se trata de responder aos muitos desafios que atravessam fronteiras e não podem ser enfrentados por um único Estado - conflitos, alterações climáticas, desastres e deslocamentos forçados de pessoas, entre outros”, pode ler-se no relatório. A organização considera que a invasão russa da Ucrânia expôs as instituições internacionais, pois “o Conselho de Segurança das Nações Unidas (ONU) foi impedido de agir devido ao poder de veto da Rússia”, e relembra que apesar de o Conselho de Direitos Humanos da ONU e outras instituições estarem a tentar recolher provas de violação de direitos e responsabilizar os perpetradores – por exemplo em zonas de crise como o Afeganistão e Mianmar-, a China conseguiu utilizar a sua força económica para impedir as tentativas da ONU de investigar crimes de direitos humanos perpetrados pelo estado chinês na região de Xinjiang.
A Civicus considera que sociedade civil deve trabalhar com estados solidários para concretizar os planos de reforma do Conselho de Segurança da ONU e abrir a ONU e outras instituições internacionais a uma maior participação e escrutínio público.
3. As pessoas estão a mobilizar-se em resposta ao choque económico - e a expôr problemas mais profundos no processo
Por ter provocado um aumento generalizado dos preços, a guerra da Rússia contra a Ucrânia tornou-se um fator-chave de uma crise global do custo de vida, o que desencadeou uma onda maciça de protestos na maior parte do mundo: o Civicus Monitor documentou protestos em pelo menos 133 países em 2022. A exigências dos manifestantes incluem melhores redes de segurança social e melhores serviços públicos, e sistemas de tributação mais progressivos. A Civicus destaca ainda uma maior sindicalização nos locais de trabalho, dando o exemplo dos trabalhadores da Amazon e da Starbucks.
A Civicus defende que sociedade civil deve ser cítica em relação às falhas estruturais do atual modelo económico global que beneficia poucas pessoas, deixando muitas vulneráveis a crises, e sugere uma aposta em advocacy em áreas como a tributação progressiva e os impostos sobre ganhos inesperados e riqueza, mais proteção social, e regulamentação empresarial mais eficaz.
4. O direito de protestar está sob ataque - mesmo em democracias de longa data
Muitos Estados, relutantes ou incapazes de admitir as exigências mais profundas dos protestos, por justiça económica, democracia ou ação ambiental, têm respondido com violência - como foi em caso em países como o Sri Lanka, Cazaquistão, Irão, e Peru, sendo que também se verifica a criminalização de manifestantes também em democracias consolidadas como é o caso da Austrália e o Reino Unido.
A Civicus relembra que as mobilizações públicas em larga escala têm sido fundamentais na formação da agenda pública, impulsionando a mudança, e que a sociedade civil e os Estados precisam de trabalhar mais ao nível da proteção da liberdade de reunião pacífica, desenvolvendo ações preventivas, defendendo reformas na aplicação da lei e assegurando que os perpetradores de violência contra manifestantes sejam responsabilizados.
5. A democracia está a ser corroída de várias formas - inclusive por parte de líderes eleitos
A democracia continua a ser sofrer retrocessos em todo o mundo. Em alguns países, em 2022, as forças democráticas recuperaram terreno diante de ameaças autoritárias, mas nenhuma autocracia de longa data deu passos significativos em direção à democracia. Nalguns países prosperam as políticas autoritárias, como é o caso da Hungria e das Filipinas.
O autoritarismo e o populismo continuam a ser correntes poderosas que se unem numa “abordagem política melhor descrita como autoritarismo popular, na qual os políticos respondem às exigências do povo por mudanças para ganhar eleições e continuar a desmantelar as instituições democráticas, restringir o espaço cívico e violar direitos”.
6. A desinformação está a distorcer o discurso público, minando a democracia e alimentando o ódio
A desinformação e as teorias da conspiração aumentaram consideravelmente durante a pandemia, minando o debate público, em temas tão vastos como as vacinas e as alterações climáticas. A desinformação é mobilizada por estados autoritários e grupos de extrema-direita sobretudo em situações de conflito e durante as eleições, para semear a polarização, normalizar o extremismo e atacar os direitos.
A Civicus defende que a sociedade civil deve desempenhar um papel de liderança no desenvolvimento de estratégias anti-desinformação, incluindo a verificação de fatos, o aumentado da literacia mediática e a promoção de melhores padrões regulatórios para empresas de comunicação social, consistentes com o respeito da liberdade de expressão.
7. Movimentos pelos direitos das mulheres e LGBTQI+ estão a conseguir avanços contra todas as probabilidades
Diante de consideráveis adversidades, a sociedade civil continua a impulsionar o progresso nos direitos das mulheres e pessoas LGBTQI+. Nos locais onde foram feitos avanços, as pessoas ganharam um reconhecimento de direitos que antes pareciam impossíveis. A Civicus destaca alguns exemplos, como a lei contra a violência baseada no género na Indonésia, o avanço dos direitos LGBT no Caribe, e o caso da Tanzânia, onde, após uma ação judicial da sociedade civil, a proibição de meninas grávidas frequentarem a escola foi eliminada. A Civicus alerta para o facto de estas vitórias fazerem da sociedade civil um alvo de reações ferozes, e que por isso enfrenta agora desafios multifacetados para se defender, resistindo às tentativas de reversão das conquistas realizadas, e de construir apoio público para garantir que a mudança legal seja acompanhada pela mudança de atitudes.
8. A sociedade civil é a principal força por trás do impulso para a ação climática
Os Estados e a comunidade internacional não estão a fazer o suficiente para lidar com aquilo que está, cada vez mais, a ser reconhecido como uma crise planetária tripla (alterações climáticas, perda da biodiversidade e poluição), mas a sociedade civil continua a ser a voz que faz soar o alarme e exige ação climática. A necessidade de ação foi provada mais uma vez em 2022 por uma longa lista de eventos relacionados com condições climáticas extremas, como foi o caso das inundações no Paquistão ou das ondas de calor da Índia.
O litígio estratégico ao nível nacional e internacional provou ser uma estratégia eficaz para expandir os direitos, inclusive em lutas pela ação climática: a sociedade civil está a conseguir levar cada vez mais os Estados e as empresas de combustíveis fósseis a tribunal por falhas no respeito aos padrões e compromissos internacionais de direitos humanos, como o Acordo de Paris.
9. A Sociedade Civil está a reinventar-se e a adaptar-se a um mundo em constante mudança
Num contexto das pressões sobre o espaço cívico e dos enormes desafios globais, a sociedade civil está a crescer, a diversificar-se e a amplificar o seu repertório de táticas. Grande parte da energia radical da sociedade civil de hoje vem de fora do universo das ONG, de movimentos muitas vezes formados e liderados por mulheres, jovens e indígenas, que precisam de ser apoiados e alimentados. Ao aproveitar os seus pontos fortes, como a diversidade, a adaptabilidade e criatividade, a sociedade civil continua a evoluir.
Apesar do momento repleto de desafios, o relatório da Civicus encontra esperança nas múltiplas formas de ação da sociedade civil, que continua a trabalhar por mudança em todo o mundo.