03 abr 2020 Fonte: Vários Temas: Saúde, Pobreza e Desigualdades, Cooperação para o Desenvolvimento
Uma das coisas mais importantes que a crise provocada pela covid-19 nos mostra é a ideia de que as pessoas dependem umas das outras. Percebemos, hoje, que o nosso bem-estar depende de um conjunto de fatores que, não estando garantidos, ameaçam a sobrevivência de cada um/a de nós. A interdependência que distingue a atualidade em relação a outras épocas, mostra-nos ainda que, na ausência de uma resposta global, será muito difícil ultrapassar a pandemia.
Desde o momento em que foi identificado, em dezembro de 2019, o novo coronavírus já infetou mais de um milhão de pessoas em todo mundo. Entretanto, no passado dia 11 de março, a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificou a doença como uma pandemia global que, até agora, já provocou, pelo menos, 51 mil mortes. O crescimento exponencial no número de casos a que temos assistido nas últimas semanas comprometem a atualidade de qualquer balanço – amanhã serão, seguramente, muitas mais as infeções registadas. Por isso mesmo, mais do que contabilizar o número de casos, as estatísticas devem alertar-nos para a dureza da realidade que, de repente, nos invadiu e para a ameaça invisível que o vírus representa para a humanidade.
A maioria dos países implementaram medidas robustas para evitar a propagação e controlar a pandemia. No continente europeu, o foco da doença após a situação na China ter sido controlada, as consequências das medidas de confinamento são-nos apresentadas a todo o momento. O dano à economia global parece agora inevitável e as medidas apresentadas pelos governos assemelham-se às preconizadas em tempos de guerra, em que importava canalizar todos os fundos disponíveis para o combate ao inimigo. Sabemos, contudo, que o impacto da crise será diferente em vários pontos do globo e que está, em grande medida, dependente da capacidade de cada país em fazer face à ameaça. À medida que a situação se desenrola, multiplicaram-se os alertas sobre o potencial impacto devastador que o alastramento do novo coronavírus poderá ter nos países considerados em desenvolvimento. Sobre esta situação, o Secretário-Geral da ONU chamou a atenção para as potenciais “consequências trágicas” da covid-19 no continente africano e apelou à comunidade internacional que mantivesse presente a necessidade de cooperar e de se solidarizar para que seja possível ultrapassar um desafio que, apesar de ser de todos/as, tem impacto maior em alguns/mas mais do que em outros/as.
Num contexto em que o isolamento social se afigura como a medida mais eficaz para evitar a propagação do vírus, os contrastes tornam-se cada vez mais evidentes. Sendo certo que a situação de clausura inesperada pode ter efeitos nefastos em todos/as nós, o impacto de medidas deste tipo em pessoas que já se encontravam em situações de fragilidade adquire uma expressão muito maior. Exemplo disso são relatos que chegam de pessoas que habitam em bairros urbanos degradados, pessoas em meios rurais sem acesso a cuidados de saúde num raio de vários quilómetros ou pessoas em zonas de conflito. Os migrantes e refugiados, retidos em campos com condições humanas degradantes têm pouca ou nenhuma possibilidade de praticar o distanciamento social recomendado, enquanto que as mulheres, além de estarem em maioria nos serviços de saúde e na prestação de cuidados aos/às mais fragilizados/as, estão também mais vulneráveis a situações de violência, nomeadamente no espaço doméstico.
O raciocínio pode ser igualmente aplicado à diferença entre as várias regiões do globo, uma vez que a situação de pandemia que vivemos realça as desigualdades que já existem, não só dentro dos países, como também entre eles. A situação dramática vivida nos hospitais relatada por profissionais de saúde em países como Itália, Espanha ou os Estados Unidos da América, faz-nos questionar o impacto que o multiplicar de casos terá em países com menor capacidade de resposta, acreditando-se que aí a pandemia será consideravelmente mais desafiante. Por outro lado, se muitos governos na UE hesitaram em decretar medidas de confinamento obrigatório por temerem os efeitos económicos de uma paralisação, no caso por exemplo do continente africano, a escolha pode, muitas vezes, ser uma escolha entre permitir o alastrar da doença e a morte à fome: para muitas pessoas, ficar em casa significa não ter o que comer e perder os poucos rendimentos que lhes garantam a subsistência no dia a dia.
Para além das dificuldades acrescidas em lidar e conter a pandemia, os impactos sociais e económicos nestes contextos são também desproporcionais. De acordo com uma análise da Eurodad, na ausência de perdões de dívida, o impacto da pandemia nos países de baixo rendimento pode resultar no engrossar do seu endividamento e comprometer a sua resposta à emergência – já que, no período em que as autoridades forem chamadas a atuar de forma mais assertiva, um valor a rondar os 22 mil milhões de dólares seria canalizado para os credores destes países. Falamos, por isso, de situações de elevada fragilidade e de países altamente dependentes em termos financeiros onde a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) continua a ser uma fonte importante de financiamento. Enquanto instrumento dedicado a melhorar a capacidade de resposta dos países em várias áreas, nomeadamente na prevenção de doenças infeciosas, a APD assume, no contexto atual, uma importância excecional. Num momento em que assistimos ao replaneamento orçamental em vários países – em Portugal, o governo assumiu inclusivamente a necessidade de apresentar à Assembleia da República um Orçamento Retificativo – seria importante garantir que os compromissos em matéria de APD se mantivessem presentes e se dedicassem ao reforço do setor social dos países que beneficiam deste tipo de contribuições, na expectativa de mitigar os efeitos da pandemia em situações de particular vulnerabilidade.
Um dos aspetos mais relevantes desta crise é a tomada de consciência de que as pessoas dependem umas das outras, não só para a prevenção do contágio como para assegurar o acesso a bens essenciais. Nunca a ausência de trabalhadores/as nos supermercados havia representado um perigo à sobrevivência tão real como aquele que hoje representa. Nunca na nossa geração havia sido tão importante manter a produção de bens que, noutra qualquer circunstância, daríamos como garantidos. Nunca o investimento nos setores sociais foi tão necessário como agora. Percebemos, hoje, que o nosso bem-estar depende de um conjunto de fatores que, não estando garantidos, ameaçam a sobrevivência de cada um/a de nós. Nunca tal foi tão óbvio como é hoje. A interdependência que distingue o período em que vivemos em relação a outras épocas, mostra-nos que na ausência de uma resposta global, será muito difícil ultrapassar a pandemia. Mostra-nos que não nos podemos considerar como estando isolados/as de um problema que atinge todos/as. Mostra-nos que não podemos resolver o problema se não olharmos para todas as pessoas que connosco coabitam neste planeta.
Neste sentido, vários economistas e especialistas em saúde apelaram, na semana passada, aos líderes do G20 para que apoiem financeiramente o fortalecimento dos sistemas de saúde e as economias dos países mais pobres. Entretanto, também a ONU lançou um apelo global a uma resposta humanitária para combater a covid-19 nas regiões mais vulneráveis que complemente as ações já por si anunciadas. Para António Guterres, “as respostas individuais de cada país não serão suficientes”. Isto significa que a cooperação e a solidariedade entre os povos são determinantes para enfrentarmos este desafio, não só por uma questão de apoio aos/às mais afetados, mas também porque o bem-estar de toda a humanidade disso depende. Tal como David Adler e Jerome Ross defendem, a “solidariedade não é caridade – é o reconhecimento que a luta de um é a luta de todos/as”. Sempre foi assim, mas hoje, perante o panorama em que vivemos, esta é uma premissa mais válida que nunca.