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Num momento marcado pela interligação de várias crises e pela complexidade em compreender para onde caminhamos enquanto comunidade global, há um elemento transversal a qualquer ângulo de análise: a mudança. O mundo está a mudar, e com ele a União Europeia. As mudanças em curso são já visíveis em várias áreas, incluindo na abordagem às políticas de cooperação para o desenvolvimento e nos objetivos traçados para a sua implementação.

Numa versão preliminar do enquadramento daquilo que poderá vir a ser a orientação do mandato da próxima Comissão Europeia no âmbito das Parcerias Internacionais1, a ideia chave é clara: a prioridade já não é o desenvolvimento humano e a erradicação da pobreza, mas sim a promoção dos interesses estratégicos da UE. Este é o reflexo das mudanças em curso a nível global, num mundo que está hoje mais polarizado, mais instável e onde a competição entre países e blocos parece mais acentuada – quando não marcada por interesses contraditórios.

O processo de definição da próxima Agenda Estratégica da UE 2024-2029 revela que as prioridades são hoje bem diferentes das assumidas em 2019: o combate às alterações climáticas na UE e no plano global e a proteção das liberdades cívicas dão agora lugar a renovadas preocupações como a segurança, a defesa, e as migrações2.

Perante tudo isto, coloca-se a questão: qual será a melhor abordagem na resolução dos desafios que coletivamente enfrentamos?

Na procura de respostas, a UE não se pode desviar das disposições acordadas no Tratado de Lisboa3, que orienta a sua ação externa em valores como a democracia, o estado de direito e a solidariedade. Num momento marcado pelo agravamento das alterações climáticas, pelo acentuar das desigualdades globais, pelo surgimento e reacendimento de conflitos militares e pelo aumento da pobreza, é difícil de compreender a redução do foco na promoção da solidariedade e do desenvolvimento global sustentável, correndo a UE o risco de assumir orientações incompatíveis com a sua constituição normativa.

Embora não seja ainda totalmente claro como é que as políticas da UE poderão ser afetadas em concreto pelas mudanças em curso, a informação que já é conhecida sobre a implementação de instrumentos como o Global Gateway aponta claramente para uma priorização da prossecução dos objetivos estratégicos da UE. Embora preveja investimentos nos setores tipicamente associados ao desenvolvimento humano (educação e saúde), a prioridade deste instrumento passa pelos setores da energia, dos transportes e do digital4. Trata-se de uma estratégia para garantir a segurança económica da UE que não reflete devidamente o seu papel e responsabilidade na promoção do desenvolvimento global sustentável.

As múltiplas crises que vivemos nos últimos anos, deixaram claro a importância da Cooperação Internacional. Com a pandemia de Covid-19, a multiplicação de fenómenos climáticos extremos e os efeitos da eclosão de conflitos armados, tornou-se evidente que a resposta aos desafios globais requer soluções, também elas, globais. Por isso, a prossecução de prioridades que ignorem o papel que a solidariedade global desempenha na construção de respostas globais, adequadas e integradas a estes desafios arrisca-se a ir contra os intentos desejados.

Tendo em conta que vivemos num mundo interdependente e interligado, atualmente marcado por um alto nível de incerteza, é um equívoco desvalorizar o papel que a ação concertada em prol do desenvolvimento sustentável pode desempenhar na promoção da resiliência e na consolidação da estabilidade global. Fazê-lo poderá ter um enorme impacto na situação de vida de camadas significativas da população, nomeadamente em Países Menos Avançados (PMA), ou em regiões menos relevantes do ponto de vista geopolítico. O potencial para a emergência de novos focos de instabilidade, em consequência deste tipo de opções, é real e deve ser contido.

Tendo em conta a importância histórica da UE enquanto ator comprometido com a solidariedade e o desenvolvimento global sustentável, com a democracia e com os direitos humanos, é fundamental reverter a tendência que se tem vindo a desenhar nos últimos anos e garantir que a próxima legislatura contribui para valorizar políticas de cooperação centradas na promoção do desenvolvimento humano. Para que tal seja possível, é igualmente importante reconhecer os obstáculos que fenómenos como a crescente polarização da sociedade e a proliferação de mecanismos de desinformação, de partilha de notícias falsas e de discursos de ódio podem levantar à definição de respostas aos desafios globais.

Por isso, a construção de soluções a estes desafios deve ser acompanhada pelo reforço dos instrumentos que possibilitam um maior envolvimento cívico das populações nos processos políticos da UE. A este respeito, a Educação para o Desenvolvimento e a Cidadania Global (EDCG) desempenha um papel crucial para “promover a tomada de consciência e a mobilização dos cidadãos e das cidadãs através de abordagens educativas e de temas transversais às questões do desenvolvimento (...) tendo em vista uma maior consciencialização sobre a importância destas questões para o bem-estar de todos e de todas e como condição para um desenvolvimento sustentável”5.A EDCG é um instrumento imprescindível na construção de uma sociedade democrática, informada e esclarecida e é um elemento fundamental no processo de definição de respostas para os desafios globais.

Por tudo isto, a Plataforma Portuguesa das ONGD apela a que os seguintes pontos sejam considerados:

  • A Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) deve ser reforçada, com vista ao cumprimento da meta de dedicar 0,7% do Rendimento Nacional Bruto (da UE e Estados-Membros) para APD até 2030, e entre 0,15% a 0,2% do RNB para APD direcionada a Países Menos Avançados (PMA);
  • O Parlamento Europeu deve desempenhar um papel fundamental na monitorização do orçamento da UE, de forma a assegurar que 93% dos fundos executados no âmbito do Instrumento de Vizinhança, de Cooperação para o Desenvolvimento e Cooperação Internacional (IVCDCI – Europa Global) cumprem os critérios do Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) da OCDE para classificação como APD, tal como estipulado no seu regulamento;
  • As metas assumidas no regulamento do Instrumento de Vizinhança, de Cooperação para o Desenvolvimento e Cooperação Internacional (IVCDCI – Europa Global) relativamente à canalização de 20% dos fundos programados para os setores da educação e saúde (desenvolvimento humano) devem ser cumpridas no âmbito do atual Quadro Financeiro Plurianual, e o seu reforço no quadro do próximo deve ser ponderado;
  • As disposições estabelecidas pelo Gender Action Plan III para que, até 2025, 85% do financiamento para ação externa contribua para a Igualdade de Género devem ser respeitadas, devendo a sua renovação ser assegurada no quadro do ciclo programático com início em 2026;
  • Com vista à valorização da Educação para o Desenvolvimento e a Cidadania Global enquanto instrumento imprescindível para responder aos desafios globais, a UE deve caminhar no sentido da implementação plena da Declaração Europeia sobre Educação Global até 20506 e dos compromissos nela plasmados;
  • A implementação do IVCDCI – Europa Global deve ser feita de forma mais transparente, devendo a informação sobre a execução dos Planos Indicativos Plurianuais ser divulgada publicamente, tal como a informação relativa à implementação do Global Gateway e das Iniciativas Equipa Europa;
  • A opção de uma abordagem geopolítica às políticas de cooperação deve ter em conta a necessidade de salvaguardar o alinhamento com os princípios da Coerência das Políticas para o Desenvolvimento e com as obrigações legais da UE relativamente a esta matéria;
  • O espaço de atuação da Sociedade Civil deve ser reforçado, nomeadamente através do aprofundamento do diálogo participativo, regular e consequente entre eurodeputados/as e entidades (e cidadãos/ãs) interessadas em participar na discussão sobre a construção, implementação e monitorização das políticas de cooperação da UE;
  • Para assegurar a capacidade de livre iniciativa e atuação da Sociedade Civil, é importante reforçar os mecanismos de financiamento, garantindo o direito de acesso de organizações de média e pequena dimensão (bem como de organizações dos países parceiros da cooperação europeia), procurando implementar de forma plena a Recomendação do Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD) da OCDE sobre o Reforço da Sociedade Civil em matéria de Cooperação para o Desenvolvimento e Ajuda Humanitária7;
  • Os critérios de acesso ao Programa da UE para Educação para o Desenvolvimento e a Consciencialização (DEAR) devem ser revistos no sentido da sua democratização, com vista a assegurar a participação de um mais diverso e plural conjunto de Organizações da Sociedade Civil.

 

1 https://concordeurope.org/2024/04/22/a-sell-out-of-international-cooperation-dg-intpa-turns-its-back-on-commitments-to-put-human-development-at-the-centre-of-its-international-cooperation-in-leaked-briefing/

2 https://www.politico.eu/article/leaked-eu-priority-list-reveals-absence-climate-change-focus/

3 Nomeadamente no quadro do Artigo 21º.

4 “A cooperação europeia para o desenvolvimento em 2024: desafios e perspectivas”, Gráfico 8.

5 Estratégia Nacional de Educação para o Desenvolvimento 2018-2022.

6 https://www.gene.eu/ge2050-congress

7 https://www.instituto-camoes.pt/images/cooperacao/RecomCAD_SociedadeCivil_PT.pdf

 

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